«Pensei esta manhã no sol de quase primavera, no que promete ser, no que brota. Um livro é, antes de mais, um acto de criação. qualquer coisa que surge onde antes não havia o que então surge. Não quero dizer que antes não havia nada, porque pode haver, por exemplo, uma terra árida, ou falsamente árida, que pode ser revolvida e de onde pode florescer algo. Um livro pode ser a forma disso que brota e que esteve anos em germinação.
Este breve intróito serve para dizer que se este é o primeiro romance de Helena Vasconcelos, ele é o resultado evidente de uma gestação longa, que se alimentou de leituras e amores. Esta criação madura é uma consequência natural, não obrigatória, mas natural, da grande leitora que a Leninha é.
Assim que comecei a ler este livro senti que ele era uma carta de amor à literatura, e também uma carta de amor a Jane Austen. Uma carta de amor é uma celebração e uma forma de prestar tributo ao outro, de dizer ao outro que se ama que os nossos dias não seriam os mesmos sem ele ou ela ou aquilo. Que a teia de encontros que a vida sempre é se alimenta muito particularmente daquele encontro.
Uma vida sem livros seria, sim, o nada de onde não poderia resultar este livro. Esta que podem ler neste romance é uma mulher que se alimentou dos livros porque tinha fome de vida. A personagem principal de "Não há tantos homens ricos como mulheres bonitas que os mereçam" tem como objecto de estudo a obra de Jane Austen. É uma jovem que se mescla com a vida da autora, com os seus caminhos, com os arquétipos, com os problemas, com a mesma procura: a procura que tem que ver com a felicidade, com a razão de estarmos aqui, com aquilo e com aqueles que fazem com que, por instantes, a vida e isto de estarmos vivos pareça menos absurdo, tenha signos que podemos decifrar. Mas Ana Teresa, nesta demanda amorosa, vai percebendo que o essencial está na busca, no agir, no impulso de existir e de querer sentir-se vivo. E que não há receitas.
Ana Teresa e Helena Vasconcelos desmontam um preconceito que, passados séculos sobre Jane Austen, continua enraizado na sociedade ocidental: a vida de uma mulher, sem os ardores do casamento e a justificação para o sentido da vida que os filhos representam, é uma vida vazia. Árida. Como se qualquer coisa de muito essencial, e que é corpo, lhes escapasse. É verdade que a vida profissional da mulher do século XXI, a sua inserção no espaço social, não tem comparação possível com o espaço reservado às mulheres no século XVIII. Mas agora como então há uma surpresa, e não raro desconfiança, em relação às pessoas (ou personagens) que parecem um fantasma, que não são de carne e osso.
Penso que Jane Austen padece, ainda, bastante, desse epíteto de pessoa que não é bem deste mundo. E não é deste mundo porque não se entende como é que uma pessoa que não está imiscuída no corpo do mundo (no sexo, no casamento, nos filhos) saiba tanto do mundo, possa escrever tão exemplarmente sobre o funcionamento da máquina complexa que é o mundo.
E se um livro for um filho?, e se for uma criação? E se um livro for a forma de falar de dinheiro e casamento, que é do que sempre se fala nos romances de Jane Austen? E se um livro for a forma de interrogar, e cito, "o que seria a felicidade e se o conceito seria diferente para qualquer mulher, tivesse vivido ela no século XVIII ou no século XXI. Sim, havia diferenças, sem dúvida, mas os dilemas mantinham-se: independência ou cativeiro? Carreira ou família? Paz e sossego ou excitação?". Posso dizer ainda de outra maneira: para que servem os livros?
Posso citar de novo e dizer que um escritor é "aquele que puxa os cordelinhos e transforma a vida das pessoas. Assumo o papel de demiurgo e faço avançar, nas mais diversas direcções, os intervenientes desta farsa a que chamamos vida".
Este é um salto que é preciso sublinhar: Helena Vasconcelos passou de leitora que encontra nos livros um instrumento de decifração da charada do mundo para criatura com capacidades demiúrgicas que faz avançar a roda, a roda, a roda - a vida.
Os romances de Austen são uma fotografia da vida do seu tempo, das relações pessoais, dos vínculos e convenções, mas são, sobretudo, uma fotografia do que Jane Austen via. E o que ela via só ela via, não era visto pela irmã nem pelo pai. Esse olhar foi vertido nos romances e faz-nos hoje pensar nas personagens como pessoas de carne e osso: afinal, há uma quase replicação nos romances, mutatis mutandis, da realidade que a circundava.
O livro de Helena Vasconcelos, através dos romances de Austen, faz também uma leitura da vida em sociedade. Não raro aproxima-se e replica personagens e situações; por exemplo, existe uma Rebeca na vida de Ana Teresa como existe uma Cassandra na vida de Jane Austen. Há no livro uma mistura de planos, cruzando pessoas e verosimilhança. Sob a estrutura romanesca, aparece um registo biográfico, factual, que revela aturada pesquisa. A ficção e a realidade como irmãs, ligadas pelo mesmo sangue.
E todos formulam de diferentes maneiras a mesma, a mesmíssima pergunta: como perseguir a felicidade, e como fazer isso com os constrangimentos do género.
Termino com uma interrogação: "seria possível a felicidade sem amor?" e "haveria realmente felicidade na experiência amorosa?".»
O texto de Anabela Mota Ribeiro na abertura do lançamento de 'Não Há Tantos Homens Ricos como Mulheres Bonitas Que os Mereçam', de Helena Vasconcelos. Foi no dia 2 de março, na Ler Devagar da Lx Factory, em Lisboa.