Raul Brandão nasceu a 12 de março de 1867, na Foz do Douro, no Porto. Viveu entre 1886 e 1901 em Guimarães, cidade que deu o seu nome à Biblioteca Municipal. Estivemos lá, no dia 12 de março, para mais uma apresentação de «A pedra ainda espera dar flor», os textos dispersos - e muitos deles inéditos - reunidos por Vasco Rosa. Na imagem, Vasco Rosa; a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Guimarães, Dra. Francisca Abreu, e o Professor José Carlos Seabra Pereira, da Universidade de Coimbra.
Aqui fica o texto lido pelo organizador desta colectânea, na noite em que se celebrava o nascimento de Raul Brandão:
«Muito obrigado pelas suas generosas palavras, meu caríssimo Professor José Carlos Seabra Pereira. Quando me apresentou no colóquio sobre Raul Brandão em Manaus, em Agosto do ano passado, fiquei vermelho como um tomate. Hoje senti-me já vermelhusco como um pimento ao sol numa banca de feira minhota. Que acontecerá numa próxima ocasião brandoniana?!... Bem haja por ter enriquecido este lançamento com o valor da sua palavra, a lição da sua sabedoria e a dádiva do seu tempo.
Quero naturalmente agradecer à Câmara Municipal de Guimarães, na pessoa da Sra. Vereadora da Cultura Francisca Abreu, à Biblioteca Municipal e à Dra. Ivone Gonçalves, sua directora, e à cooperativa A Oficina, a oportunidade de aqui estar no dia do aniversário do escritor, nascido há 146 anos no Porto, mas tão profundamente vinculado a Guimarães. E quero agradecer muito ao arquitecto arquitecto Manuel Roque e engenheira Estrela Roque a visita que nos concederam à famosa Casa do Alto, em Nespereira, e felicitá-los como português pelo belo restauro que ali empreenderam, salvaguardando a memória desse ícone da vida e da obra de Raul Brandão, cuja intensidade carismática percorreu gerações e brilhará ainda por muitas mais.
Permitam-me uma nota pessoal e que dedique as palavras que se seguem ao meu filho Tomás, que dentro de poucas horas fará 20 anos e que só não está fisicamente entre nós por se encontrar na Lituânia, num semestre de Erasmus.
Todo o tempo que dediquei à pesquisa dos dispersos de Raul Brandão dou-o por muito bem empregue, pela certeza, sempre crescente e confirmada, de que publicá-los representaria um grande avanço para uma leitura mais completa da sua obra literária e para uma compreensão mais ampla da sua vida enquanto escritor que também foi um homem de jornais. A biografia que Guilherme de Castilho lhe dedicou em 1978, e que eu, também com 20 anos, curioso por biografias, então li, deixava já muitas indicações a quem quisesse aventurar-se na reconstituição e publicação dos artigos e crónicas que Brandão escreveu em revistas literárias e em jornais. Vinte anos depois, em 1998, dirigindo a editora Cosmos, pude perceber que a tese académica de Vítor Viçoso sobre Raul Brandão, produzida anos antes, estava ainda por publicar e tomei a iniciativa de promover a sua edição, como contraforte das obras do nosso escritor então em curso de publicação numa série de Clássicos Portugueses. Também neste seu importantíssimo estudo, este professor da Faculdade de Letras de Lisboa comentava e discutia textos de Raul Brandão em jornais como Correio da Manhã, da década de 1890, aos quais dava especial significado, sem que os mesmos pudessem ser lidos em qualquer um dos seus livros. Também o precioso Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa (1900- 1940), de Daniel Pires, e o catálogo da exposição na Biblioteca Nacional por ocasião dos cinquenta anos da morte de Raul Brandão, acrescentavam o registo de outras publicações a que dera contributos literários, e ainda inéditos em livro.
Por tudo isso, quando, poucos anos depois, em 2004, desenvolvi o projecto de uma colecção de livros de escritores-jornalistas, a escolha de Raul Brandão era para mim das mais evidentes. Foi assim que preparei o livro Sonhos, chamando a título uma das palavras centrais da mundividência brandoniana. A colecção tinha carácter efémero, dada a sua circulação restrita a bancas de jornais, o que me deixou campo aberto para fazer dois anos depois uma reedição revista e muito aumentada, já em dois volumes, pela editora Ambar, do Porto: Lume sob Cinzas e Paisagem com Muitas Figuras. Alarguei já aqui o fôlego e o raio de acção dessa arqueologia literária, praticamente duplicando a recolha precedente. Os leitores fiéis e reincidentes dos livros de Raul Brandão devem ter tido curiosidade por essas novidades velhas, porque a edição de 1500 exemplares esgotou-se em poucos anos, o que me deu a possibilidade de trabalhar com vista a uma nova edição, ainda mais reforçada que a anterior.
Este work in progress, esta possibilidade de acrescentar materiais a um trabalho anterior, que a pesquisa, o acaso e a generosidade de amigos — entre os quais quero evocar aqui o sr. Luís Amaro, antigo colaborador da Fundação Calouste Gulbenkian — permitiram localizar e integrar, fazem desta edição de Dispersos de Raul Brandão uma recolha quase absoluta dos seus trabalhos publicados na imprensa. Escrevo quase absoluta porque seria audaciosa petulância supor que nada me escapou, ou que nenhum jornal contendo colaboração do nosso escritor foi irremediavelmente destruído pelos elementos e pelo descuido do Homem e das instituições. Quem nos pode garantir que em algum jornaleco de remota província, daqueles que duraram escassos meses, como houve tantos em finais do século xix e inícios do xx, não nos surgirá um dia, para nosso espanto e júbilo, uma crónica, um conto, uma narrativa de viagem do autor de Húmus? Quem pode dizer que a descoberta do passado foi concluída? Ninguém pode. Mas ainda bem!
Na minha actividade, preparei outras recolhas de escritos de autores de que gosto muito, mas em nenhuma delas fui tão longe como com Raul Brandão. Tão longe na extensão do esforço dispendido e tão longe, também, na busca de entendê-lo tão bem para que, desse modo, o meu trabalho de editor fosse o mais claro, objectivo e discreto possível. Obviamente, a minha cabeça e a minha mão não são a do escritor, o título do livro, a organização, designação e sequência dos capítulos são todos meus, mas acredito ter conseguido que a letra e o espírito deste livro sejam imediatamente reconhecíveis pelos leitores habituais da obra de Raul Brandão como um trabalho dele.
Estes dispersos são como peças de um puzzle que acrescentam, preenchem e completam a paisagem da obra literária de Raul Brandão. Muitos destes textos podem surpreender até os leitores mais fiéis da sua obra, que sabem que os temas e as personagens são recorrentes, o que aqui se confirma amplamente. Vão gostar de ler textos sobre os pescadores escritos duas décadas antes do grande livro dedicado às gentes do mar. Quem é mais atento à dramaturgia de Raul Brandão encontrará aqui páginas de crítica que iluminam a sua vontade de renovação do teatro do seu tempo. As suas preocupações sociais estão espelhadas em reportagens em presídios, abrigos e lares de idosos e no capítulo «A voz do homem», que aborda o anarquismo, a revolução francesa, o sacerdócio católico, o humanitarismo internacional, e o golpe militar de 5 de Outubro que em 1910 impôs a república a Portugal. A sua faceta de crítico literário aparece pela primeira vez, a par de páginas de outra tonalidade que poderiam ter sido entremeadas às suas Memórias. Alguns escritos sobre a paisagem portuguesa dão-nos o melhor do escritor que foi também um colorista exímio.
Muito pode ainda ser feito por Raul Brandão e Guimarães, a que ele esteve tão profundamente ligado e que conserva o seu espólio literário, tem condições e créditos especiais para chamar a si o protagonismo de uma campanha pelo seu reconhecimento como um grande escritor europeu e universal. Que as oportunidades perdidas não travem a Cidade nessa tarefa infinita de lembrar, prestigiar, ler e dar a ler um dos melhores escritores portugueses de todos os tempos.
Muito obrigado!!»