«Está quase na hora de a Bruna levantar e ir para o banho. Velho safado. Dorme com uma, acorda com outra. Júnior toma outro copo de café e volta para o sofá. Mantém os ouvidos alertas, mas o silêncio, ou algo muito próximo disso, desarma sua consciência. Júnior dorme.
Acorda com o irritante som do despertador no quarto de Bruna. No mesmo momento a porta do armário do pai começa a ranger. Constrangido, Júnior cobre a cabeça com a cabeça ensebada. Ainda assim percebe quando a porta do quarto de Bruna se abre e quando a do banheiro se fecha, segundos depois. 0132008601. Atuador de marcha. Imagina que essa deve ser a parte de maior expectativa. O momento da espera. Quando Bruna retorna ao quarto envolvida na toalha de banho e começa a secar o seu pálido corpo. Ouve a descarga. Ouve o chuveiro sendo ligado. Sente algo em suas costas e salta temendo a barata. Não consegue enxergar. Pisa num caco do copo e cai sentado no sofá. É apenas uma lasca de vidro, mas dói. Não era barata, era só uma sensação. Consegue tirar a lasca de vidro. Bruna sai do banho, avista a silhueta de Júnior.
- Bom dia.
- Bom dia, Bruna.
- Você me assustou.
- Desculpe.
- Eu me tinha esquecido de você, quer dizer, que você está morando aqui.
- Por que não se troca no banheiro? É perigoso pegar uma corrente de ar...
- Porque não tenho onde deixar a roupa que vou vestir. Eu pedi pro seu pai comprar um daqueles ganchos que você pendura atrás da porta, mas ele nunca se lembra de comprar. Como chama aquilo?
- Acho que se chama gancho mesmo. Pode deixar, eu vou providenciar isso para você.
- Não. Deve ter um nome. Tudo tem um nome. Tudo o que existe.
- É verdade. Até o que não existe tem nome.
- Até o que não existe?
- É.
- Dá um exemplo.
- Dragão.
- Mas dizem que um dia existiu.
- Não, os dragões nunca existiram.
- Não gostei desse exemplo, dê outro.
- A Medusa...
- Não, um exemplo de algo que não seja mitológico.
- Deixa eu pensar...
Júnior não consegue trazer nada à mente.
- É melhor eu pôr a roupa antes que pegue essa tal corrente de ar.
Bruna fecha a porta. Sênior deve ter ficado ansioso com a demora. Deve ter ouvido os outros conversando. Esse pensamento traz um quase-sorriso ao rosto de Júnior. Agora ela deve ter largado a toalha. Júnior vai para a área de serviço. Numa das mãos o cigarro, na outra segura a pá do lixo, por precaução. Ela vai reclamar do cheiro do cigarro, mas Júnior precisava disso.
Ainda procura lembrar-se de algo que tenha nome e não exista.»
Excerto de A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, um dos distinguidos com o Prémio PT Literatura, anunciado ontem à noite, em S. Paulo. Será publicado em Portugal em Fevereiro de 2010.