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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

«Para quem gosta de falar do tempo e toma consciência da importância que ele tem, os Açores são o lugar ideal. Falar do tempo aqui não é uma banalidade. Nos Açores o tempo é idealmente meteorológico, ou seja, uma abstracção. A pressão atmosférica, a orientação e velocidade do vento, a quantidade de humidade que há no ar, a influência que a saturação do ar tem sobre o corpo, logo sobre os humores, logo sobre o espírito humano, tornam-nos a todos meteorologistas amadores. Fala-se do tempo como se a nossa vida dependesse disso. Mas não há propriamente tempo, vai havendo tempo, há atmosferas. Há ambientes, há processos, tudo está em permanente mutação. De um momento para o outro cai uma chuvada, produz lama, cai-se na ravina e ali se fica, morto ou vivo. Escoteiro ou não escoteiro. A ideia de desamparo midatlântico permeia toda a experiência humana. Aquilo que somos depende do que vemos e o que vemos depende da luz com que o vemos, do verde fundo ao verde dourado, conforme a velocidade e a qualidade da dissipação da nuvem no ar. Não há como os Açores para nuvens. Providenciam uma espécie de cinema natural. Falo das nuvens porque são uma referência no céu, nesse céu onde, segundo o narrador, devemos ter bens assentes os pés. É um chão mutável, que nos foge, mas enquadra e organiza a paisagem. Angustiante é um céu absolutamente limpo numa ilha. Assentes nas nuvens vamos fugindo. Não temos centro. O que está fora está dentro, a paisagem é toda interior, ficamos permeáveis como amibas. A mutabilidade traduz-se numa suspensão do tempo histórico. Ele é todo clima. Idealmente, o tempo histórico quer terminar. Aqui, a História já se comporta como se tivesse chegado ao fim. A mutabilidade traduz-se, também, num permanente devaneio, convida à fantasia, à deambulação, à dolência, à dormência, que têm a ver com a memória sem projecto, a memória vaga, fluida, em que passado e presente muitas vezes se sobrepõem como em sobreexposição fotográfica; e convida à saudade e às suas invenções, sobretudo a invenção de tudo o que não foi, o ressentimento pelo que podia ter sido e a abertura à depressão. É o triângulo dos Açores: devaneio sobre o que não foi, ressentimento pelo que podia ter sido, depressão cavernosa ou inacção.

Ao turista esta, chamemos-lhe assim, realidade, provoca a apoteose do olhar deslumbrado, mas sem o esforço, sem a actividade crítica do deslumbramento. Subjuga-nos e deixa-nos sem palavras, incluindo a palavra deslumbramento. É uma beleza que nos cala. Não é particularmente acolhedora. Dirige-se a zonas que em nós não se exprimem, mas sofrem da beleza: o temor e o tremor, a pele, a comoção. E este deslumbramento é actividade a tempo inteiro no arquipélago. Para os nativos, acaba por ser uma espécie de condenação. É como viver num paraíso para onde ninguém quer ir. Mas o narrador é turista na própria terra, vem visitar a memória de um avô e a sua própria, de infância e de adolescência. Emigrante, por assim dizer, já com o trabalho da distância feito dentro de si.

Nos Açores, fora o olhar, diga-se que não há felizmente muito mais distracções. Em rigor, não há nada para fazer. O torpor açoriano impõe-se como modo de ser. É um mercado pouco atraente para as drogas leves: a ilha já é um opiáceo. Para a cocaína é que deve haver procura. As minhas fotografias de férias em Santa Maria são de bichos: galinhas, cavalos, vacas. Era o que havia. A falta de distracções torna-nos extremamente concentrados e atentos a tudo o que existe, sem a fadiga de estarmos realmente extremamente atentos. É um minimalismo em que todas as coisas valem e são belas, as rochas, as águas-vivas semi-mortas,  todo o espectro do visível, da inocência da vaca ao veneno da pelágia, é toda a vida da ilha que está neste romance. Nele se tematiza essa relação necessária com o que há à nossa volta, as árvores cujos nomes se conhece bem (“carvalhos, metrosíderos, faias, plátanos, incensos”, araucárias, azáleas, hortênsias,  criptomérias), nomeação de carácter sedutor e quase circense, e também com os lugares das primeiras experiências, dos primeiros amores, uma história à qual já se é afinal quase indiferente. Há algo de simultaneamente insone e sonâmbulo neste deambular, nota-se o esforço anímico da deslocação de A para B; o que parece natural no narrador é estar parado com o mundo a aparecer e a desaparecer à sua frente: os romeiros, as romeiras, as sopas do Espírito Santo, os antigos colegas de escola, o traficante Laureano, a stripper do Pico, o cicerone chinês, o homem que reza por todos os aflitos do mundo. Visões, aparições, assombrações. Não é por acaso invocada a sombra de Kafka, o episódio em que Beckett apanha um murro inexplicável. Para este narrador, a pelágia real e o pesadelo da pelágia do tamanho de um cachalote são as duas faces dessa mesma moeda insular: não são sonhos dentro de sonhos dentro de sonhos, é um estado em que não se consegue dormir e não se está nunca bem acordado. Esse é o torpor açoriano, que pode ser vivido com a angústia de quem quer acordar e não consegue, ou com a aceitação de quem se deixa embalar pelo mar que é belo e venenoso, sem esperança de se conseguir afogar de vez. É um subreptício, submarinho, subterrâneo basso continuo. Como diz o Paulo Varela Gomes, a ilha tem horizonte, mas não tem saída.

Diz o narrador a certa altura: “Se tivesse aprendido a surfar não me dedicava ao ofício da escrita”. Identifico o problema, sinto empatia. Quem se deslumbra com ondas gigantes sabe muito bem qual é o seu lugar no mundo. Há os que ficam em terra e os que se fazem ao mar; todo o escritor lamenta ter imaginação suficiente para se ver surfista e não se fazer ao mar; é uma culpa que todos carregamos, considerar a escrita uma espécie de incapacidade para a vida verdadeira. Há no escritor qualquer coisa de ilhéu; mas ele vive o seu isolamento de uma forma produtiva, sempre à beira-mar, nessa distância íntima, vivendo a fantasia; a imaginação que tudo nos permite é a mesma que não nos permite fazer o que imaginamos; não só pelo medo, porque o medo conquista-se, há técnicas que permitem conquistá-lo em segurança; mas porque a actividade de surfar, para ser bem feita, impede a outra vida que é a da escrita, a nossa vida verdadeira.

A sombra do assassino Merseault, o “Estrangeiro”, de Camus, pousa sobre o romance com mais peso que outras sombras mais nomeadas.  As duas linhas narrativas – a da tuberculose e penoso tratamento de seis anos de João Pereira da Costa, o avô do narrador, e a da vivência abstrusa de um envolvimento não-envolvido com improváveis traficantes de droga em São Miguel – relacionam-se de forma aleatória, à boa maneira da vaga ondulação que por todo o lado nos cerca. A realidade social da ilha é menos interessante do que a sua atmosfera. E a sua realidade inclui traficantes que são sempre e necessariamente personagens de ficção. A passagem de uma linha narrativa a outra é por vezes puxada por antagonismos, outras vezes chamada a despropósito e em virtude do despropósito, outras por contaminação, ou por identificação, ou por contiguidade, paralelismos vários e formas diversas de associação.

Todos nós temos pelo menos um avô. Esse avô pede atenção, pede rememoração. Desde tempos imemoriais, netos voltam a ilhas para investigarem avôs com quem se identificam e em que procuram raízes. O meu ainda espera, há muito pulverizado, a homenagem desta relapsa neta. A viagem sentimental à Sterne, ele próprio tuberculoso em romagem terapêutica, dobra-se aqui de romance existencialista e deambulação romântica. Se este narrador caminhasse, em vez de correr com os meniscos a ranger, e caminhasse rijamente por montes e vales, seria um homem do Romantismo, subiria montanhas mágicas e deixar-se-ia retratar nos cumes pelo Caspar David Friedrich. Teria crises e nevroses, clamaria por um Deus que fizesse sentido. Mas o avô e o neto são homens sérios, nitidamente não-surfistas, sendo o neto assumidamente um melancólico da variedade aérea. A aventura maior do avô foi sofrer e sobreviver. Esta é a epopeia do homem que sofreu, se curou, trabalhou, escreveu a experiência da tuberculose, teve três filhos e acabou sentado na companhia de uma garrafa de oxigénio. O biógrafo veio-lhe por via genealógica. É ele o anti-herói por excelência.  “tinha duas doenças”, diz o narrador, “a tuberculose e o rancor”. Aparentemente curou as duas. Porque o tempo tudo cura. Não lhe podemos pedir mais.

 

Luísa Costa Gomes, sobre CÉU NUBLADO COM BOAS ABERTAS de Nuno Costa Santos (na apresentação do livro a 3 de março, em Lisboa). 

LCostaGomes Vitorino Coragem.jpg

Fotografia de Vitorino Coragem: Luísa Costa Gomes lê este texto.  

 

Foi na passada sexta-feira, numa Ler Devagar repleta, que lançámos o novo romance de Filipa Martins, Mustang Branco. José Alberto Carvalho apresentou; Inês Meneses, Fernando Alvim e Nicolau Santos leram excertos da obra; Marta Pereira da Costa (guitarra) e Carlos Manuel Proença (viola) ofereceram um magnífico momento musical.

 

 © Jorge Simão

 

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