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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

Um excerto do excerto de Deserto Sem Saída, de Mohamed Dib publicado no blogue Pirra.


«E agora que a todas deu nome – tanto quanto podemos pensar – ele descansa. Enquanto isso, trinca um fruto a ele oferecido pela mulher, também ela nua, tal como a extraiu de si próprio, nua e passeando por esse jardim. Em troca desta dádiva, desta cortesia, ele recita-lhe os nomes que acabou de atribuir às coisas, que, até aí, não tinham nome nenhum. Ela senta-se e, enquanto escuta, com um seio esmagado contra o flanco do homem, a longa enumeração, a bela adormece. Ele repara nisso, parece compreender que é a resposta mais justa à sua fastidiosa litania. Mudo, contempla-a no seu sono. Certamente lembra-se, nesse momento, de que ela é a única que ainda não recebeu nome. E nós ouvimo-lo dar-lhe um.
            - Hawa – diz ele.
            Olha para ela; repete:
            - Hawa.
            - Sim – diz ela, no meio do seu sono.
            Este “sim” atravessa a grade e ouvimo-lo chegar até nós a aflorar-nos com a frescura de uma brisa.
            Mas, mal ela proferiu esta aprovação – e aí reside o artifício que ele usou – o efebo sem idade volta a pegar nela e refunde-a nele, tornando-se o hermafrodita do fim, como já fora o do início. Assim o hermafrodita coroado, o real enigma, é ele, tal como se apresenta diante de nós.»

 

 

- Como é que sabe?

- Sei o quê?

- Que não vai acontecer nada.

- Que não vai acontecer nada? Ora, porque penso nisso, meu rapaz: aquilo que nos devia acontecer, já aconteceu.

- O quê? O que é que nos aconteceu?

De repente, Hagg-Bar diz:

- Chiu! Escuta.

- O que se passa, senhor?

- Não, deixa-me ouvir.

- Peço-lhe: diga-me o que se passa.

Com os sentidos alerta e a voz que se contrai num murmúrio, o homem enorme lança, instantes depois:

- Dir-se-ia que alguém mata alguém.

- Não!

- Sim.

Meditativo, Hagg-Bar repete:

- Sim. Tarde de mais.

- O senhor não acredita nisso. Não o diz a sério.

- Não há como saber. Esta imensidão é como uma porta que agora mesmo nos fecharam na cara. O próprio dia é uma outra porta. Haverá algures uma saída? Onde poderíamos encontrá-la? Aconteceu alguma coisa.

A ênfase de Hagg-Bar nestas últimas palavras em tudo se assemelhou ao rugido do leão. Falta apenas uma juba a este leão, mas as bandas do keffieh aí estão para a substituir. O alarme que a sua voz acaba de transmitir ao ar, paira ainda sem se extinguir.

 

O Deserto sem Saída, de Mohammed Dib | série mediterrâneo

Tradução de Catarina F. Almeida

 

«Ele, o homem, cantou nessa noite enquanto a noite durou. (...) Cantou para os animais, depois de estes terem rejeitado o dom da palavra. Depois, não se sabe para quem nem para quê terá cantado. À volta da sua voz, não podia haver maior silêncio. O seu canto tão-pouco perturbava a obscuridade. Só as estrelas estremeciam.» 

 

O Deserto sem Saída, de Mohammed Dib | série mediterrâneo

Tradução de Catarina F. Almeida.

 

A Revista Ler já está nas bancas. José Eduardo Agualusa, em O Lugar do Morto, «espaço onde escritores já desencarnados reflectem, a partir do além, sobre os dias que correm, dedica a sua crónica aos livros», partindo de A Ninfa Inconstante de Cabrera Infante e passando por Cortázar, Nabokov e Fernando Pessoa. José Guardado Moreira escreve sobre O Velho Expresso da Patagónia e José Riço Direitinho sobre O Deserto Sem Saída.

 

Dois personagens insólitos caminham, perdidos, no deserto. Não se sabe de onde vêm e dirigem-se para um destino improvável. Talvez sejam sobreviventes de uma guerra contemporânea, apenas libertados e já engolidos pela areia sem fim. Hagg-Bar (o amo) e Siklist (o criado) formam uma parelha burlesca que nos remete para as figuras do D. Quixote de Cervantes ou do tearo de Beckett. Neste deserto, bem como na prosa de Mohammed Dib, o Oriente e o Ocidente procuram, juntos, vestígios do seu passado ou futuro comum.

 

Deserto sem Saída, de Mohammed Dib | série mediterrâneo

Tradução de Catarina F. Almeida

 

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