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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

Longe da literatura, o mesmo clima de tensão entre a população das favelas do Rio de que fala Black Music de Arthur Dapieve, atingiu porproções inéditas e muito mediatizadas. O que sabemos é o que nos chega pelos directo dos telejornais, pelos telefonemas dos correspondentes de rádio, o que sai na imprensa.Tony Belloto diz o que pode sobre o que se está a passar.

«Jô bem ou mal melhorava do pescoço para baixo. Os pequenos seios empinados pareciam dois balões de gás presos pela blusa de malha preta. A barriga se entortava para trás, cheia de curvas. O traseiro monstruoso surgia ao lado dos quadris, como uma construção ilegal por trás de uma fachada. As pernas eram grossas, mas bonitas. Eu terminei de olhar a Jô e vi que a Jô me olhava de volta. Abaixei os olhos e estendi o prato na direcção dela, agradecendo. O pedaço de carne de boi chupado jazia murcho e frio na borda do prato, como um cachorro atropelado na beira de uma estrada.»

 

De Black Music, de Arthur Dapieve. Nas livrarias amanhã.

 

Quando, naquele dia, voltava do liceu para casa, o autocarro em que seguia foi interceptado por três homens de UZIs e máscaras de Bin Laden, e Michael Philips — um adolescente norte-americano a viver no Rio de Janeiro — foi raptado e levado para um morro. Aí ficará em cativeiro, à espera que os seus sequestradores recebam o resgate. Este miúdo é negro e adora basquete e jazz. He-man, chefe do morro e da «célula terrorista» que praticou o rapto, é um miúdo branco, franzino e pouco mais velho do que o rapaz sequestrado e tem ambições musicais: He-man quer ser rapper. Para cuidar de «Maicon Filipe», He-man destaca uma das suas namoradas, a boazona Jô. Está assim constituído o triângulo afectivo-musical, e o trio de narradores de Black Music. Fugindo a registos realistas e hiperrealistas com que a literatura habitualmente trata o problema social das favelas e da criminalidade, Arthur Dapiève compõe esta história (e a de cada um dos seus personagens) como um diálogo em que mundos e referências musicais se cruzam, bem como sonhos e paixões. Black Music é uma nova forma de contar a violência.

 

Black Music, de Arthur Dapieve | série língua comum. Nas livrarias a 9 de Abril.

«Era manhã de carnaval. Bernardino abriu um olho, depois outro, e este alcançou Maria, ressonando ali ao lado. Era manhã de carnaval, não se poderia ainda dizer se ela viria a ser bonita, mas o publicitário estava aliviado: agência só na quinta-feira de cinzas. Eram cinco dias longe de Adelaide e cinco dias longe de Adelaide talvez fossem tudo o que ele precisava para se emendar e não dar novos vexames como o dado ao piano do Copacabana Palace. Na quinta-feira seguinte à festança, lógico, ele não conseguira aparecer para trabalhar, pois seu fígado estava a fazer uma operação tartaruga. Na sexta-feira, antes de sentir-se novamente mal, tivera tempo apenas de resolver algumas pendências insignificantes com Laura e dar uma passada na sala de Milano, como quem não quer nada, só para aferir o bom humor do velho depois da noite dos 25 anos da agência. Depois de uma e de outra tarefa, passara os olhos preguiçosamente pelos remetentes e pelos assuntos das dezenas de e-mails acumulados durante o dia no estaleiro. Abrira apenas dois deles.

 

O primeiro, ainda de quinta-feira, 14:13, dizia:

<Oi, Dino, tudo bem? Fiquei preocupada com você ontem. Você bebeu tanto e a sua mulher estava com um ar tão triste na pista de dança... Por que você faz isso? Você também acha que a agência vai fechar em breve, como o P.H.? Ele me falou isso agora de manhã, no café, e disse que não sabia se você viria trabalhar. Beber do jeito que você bebe vai acabar te fazendo mal. Desculpa não ter assistido até o final da sua interpretação da música do Caetano Veloso: eu comecei a chorar e tive que sair dali. Beijos pra vc, Adelaide.>

 

A segunda mensagem, datada daquela mesma sexta, 9:37, dizia:

<Oi, Dino, eu de novo... Espero que você tenha melhorado ao menos o bastante para dar as caras aqui antes do feriadão de carnaval. Vou sentir saudades se não te vir... Me dá uma ligada, de qualquer maneira? Só para eu saber que você já está recuperado? Tô meio mãezona, né? Apesar de cansada dos Escravos da Mauá, ontem, vim cedo hoje pra agência pra poder sair logo e curtir a folia. Hoje sai o Carmelitas! Beijos pra vc, Ade-Laide.>

Bernardino aprendera, em meia dúzia de rápidas conversas ao pé da máquina de café com Adelaide, a importância do carnaval, não apenas para ela, como para toda aquela geração de Paulos, Thiagos, Renatas. E, claro, Mários e Marias. Sim, era um pouco chato admitir isso, porque essa admissão igualava seus filhos a Adelaide, ou seja, dizia pô, cara, você tem idade para ser o pai dela! nas entrelinhas, mas a convivência com a ruiva, ainda que corrida entre um almoço comercial e outro, ainda que quase sempre mediada pelo correio eletrônico, vinha lhe ajudando a entender melhor os jovens que tinha em casa.»

 

 

Excerto de De Cada Amor Tu Herdarás Só o Cinismo, de Arthur Dapieve. Dapieve virá a Portugal em Abril, mês em que publicamos Blackbox, um novo romance do autor brasileiro.

 

 

Arthur Dapieve nasceu no Rio de Janeiro em 1963. Formou-se em Jornalismo na PUC-Rio, onde hoje em dia é docente. Foi crítico musical, repórter e editor de cultura no Jornal do Brasil e no Globo, onde desde 1993 assina uma coluna. Apresenta o programa Sem Controle no canal televisivo GNT. Autor de vários livros como Brock. O Rock Brasileiro dos Anos 80, Miúdos Metafísicos ou Guia do Rock em CD, Dapieve estreou-se como romancista com De Cada Amor Tu Herdarás Só o Cinismo, agora na sua primeira edição portuguesa publicada pela Quetzal. O seu romance mais recente é Black Music.

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