Neste texto, Frederico Lourenço fala do seu trabalho de tradução da Bíblia como uma operação de restauro. «Quando se limpa um quadro antigo, surgem cores que surpreendem e até chocam. Há uma mudança de percepção: em termos estéticos, há uma nova realidade.»
Cada língua tem o seu perfume, a sua tacteabilidade, a sua música, as suas cores. E estas são qualidades que na língua grega, com a sua longa história (de Homero ao jornal de domingo publicado hoje de manhã em Atenas), estão presentes de forma superlativa, como sabem todas as pessoas que alguma vez estudaram grego. Numa demonstração admirável de sensibilidade poética, quis o destino (ou Quem o controla) que uma nova religião, nascida no século I da nossa era, recebesse como documento fundacional um conjunto de 27 livros escritos em grego – essa colectânea de textos extraordinários a que chamamos «Novo Testamento».
Logo os primeiros tradutores que verteram esses 27 livros para latim, copta e outras línguas faladas entre os primeiros cristãos devem ter sentido uma frustração enorme: como fazer passar todo o perfume das palavras, toda a sua tacteabilidade, a sua música, as suas cores? Como transmitir a flexibilidade das frases gregas? Como emular a simplicidade transparente dos Evangelhos, a fraseologia rica e densa de Paulo, a pirotecnia verbal quase barroca da Carta aos Hebreus?
Restituir (na medida em que a língua portuguesa o permite) as cores originais ao Novo Testamento foi a minha tarefa nos últimos anos. Palavra a palavra, o que fiz foi limpar o que obscurecia as palavras, o que lhes retirava os contornos nítidos, as cores vivas. Guiei-me pelo espírito dos restauradores que, em Madrid, fizeram o magnífico trabalho de restauro da Crucificação de Rogier van der Weyden.
Entre as coisas que estavam obscurecidas, restituí todos os tempos originais dos verbos, para manter o jogo que encontramos nos textos entre passado e presente. Isso permite-nos voltar ao imediatismo do espírito com que os Evangelhos foram escritos: eles trazem-nos, por meio do constante recurso ao presente («Jesus diz», misturado com «Jesus disse»), Cristo a falar e a agir como se fosse hoje. Procurei manter a ordem das palavras tão próxima quanto possível das frases originais, para ajudar as pessoas que, sabendo um bocadinho de grego (mas não grego suficiente para ler o texto original sem nenhuma ajuda), queiram fazer a experiência de ler, lado a lado, o texto grego e a tradução portuguesa: facilmente encontram todas as palavras gregas no texto português, quase sempre pela ordem com que elas surgem em grego.
Outro trabalho de restauro incidiu sobre o rigor vocabular. Por exemplo, a palavra «escravo», que ocorre mais de 120 vezes no Novo Testamento, disfarçada em traduções anteriores, voltou a estar visível no texto (porventura demasiado visível, para o gosto de alguns). Mas não vale a pena fingir que ela não está presente no Novo Testamento, porque toda e qualquer pessoa que lê o texto em grego sabe que está. Frases incómodas de Jesus (como Lucas 14:26, 17:21, 19:27) não foram reescritas e adaptadas para suavizar a controvérsia que lhes é inerente. Por outro lado, todas as palavras que estão subentendidas no texto original mas não explícitas (porque o grego é uma língua por vezes mais sintética do que o português) estão claramente indicadas pelo uso de parênteses angulares, sistema que (tanto quanto sei) ainda não tinha sido utilizado em nenhuma tradução portuguesa do Novo Testamento (nas anteriores as palavras reais e subentendidas estão todas misturadas, sem que o leitor desconhecedor de grego possa distinguir entre elas). Para dar este exemplo (Mateus 24:40-41): «Então dois <homens> estarão no campo: um será levado e um será deixado. Duas <mulheres> estarão a moer no moinho: uma será levada e uma será deixada».
Depois há outros pormenores em que incidiu o trabalho de «restauro». Compatibilizar todas as palavras e expressões iguais em Mateus, Marcos e Lucas, por um lado. E, por outro, distinguir as subtis diferenças. Por exemplo, em Mateus 24:2 («não deve ser aqui deixada pedra sobre pedra que não será desmoronada»), encontramos uma frase que é subtilmente diferente em Mateus, Marcos (13:2) e Lucas (21:6). É este último que dá a formulação mais compreensível que, por isso, é aplicada por muitos tradutores (mesmo internacionalmente) de forma uniformizada às passagens referidas dos três evangelistas. O meu trabalho de «restauro» passou por diferenciar as passagens, conforme o original.
É claro que, quando se limpa um quadro antigo, surgem cores que surpreendem e até chocam. Há uma mudança de percepção: em termos estéticos, há uma nova realidade. No entanto, em termos reais, a essência da obra continua a ser a mesma. Um Novo Testamento com as cores mais «garridas» continua a ser o livro mais extraordinário que alguma vez se compilou.
[Texto publicado originalmente — no passado domingo — na página de Facebook de Frederico Lourenço.]