Para João Maurício Brás, este livro reconciliou-o «com o romance em língua portuguesa de Portugal, porque é simples, compreensível, mas simultaneamente tem várias camadas, níveis de profundidade e possibilidades de leitura.» Este livro é muitas coisas. «Céu Nublado com Boas Abertas» podia ser uma epígrafe da existência.
Texto de João Maurício Brás, na sessão de lançamento que decorreu em Setúbal, na Livraria Culsete:
Céu Nublado com Boas Abertas publicado pela editora Quetzal em 2016 é o primeiro romance de Nuno Costa Santos, mas não é o seu primeiro livro. Nascido em 1974, açoriano, da ilha de São Miguel, mudou-se para Lisboa aos 18 anos, para estudar Direito, e foi viver para casa dos avós maternos, no bairro daEstefânia. Foi nessa casa, ao procurar livros para ler, que descobriu um livro escrito pelo avô, que viria a influenciar este seu primeiro romance.A avó contou-lheque nesse livro o avô relatava principalmente a sua experiência no Caramulo, onde esteve a tratar-se de tuberculose. «Ele nos anos 40 do século passado saiu da ilha de S. Miguel para vir para o Caramulo e conta essa sua experiência de luta, de combate, de vontade de se curar de uma doença que contraiu enquanto militar na ilha de S. Miguel,”
Alguns dos seus trabalhos: Um livro de contos: Dez Regressos,(2003), o programa televisivo Zapping, os livros de poesia. Os Dias Não Estão Para Isso (2005), Às Vezes é um Insecto que faz Disparar o Alarme (poesia), O Inferno do Condomínio (2006). O importante Melancómico (livro de aforismo, programa de televisão e blogue), o livro sobreFernando Assis Pacheco: Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco (2012) e em 2014, a vez das crónicas, com o livro Vou Emigrar para o Meu País.
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Numa das primeiras conversas com o Nuno, dizia-me ele que só devemos falar de livros que gostamos (ainda este livro não estava publicado). Afirmação simples, mas contêm quase um programa de vida e tem toda a razão. O tempo é precioso demais para o perdermos, a não ser por motivos profissionais, com o que não gostamos.
Podemos até regressar a algo mais básico e decisivo e perguntar porque lemos um livro? O que procuramos nesse objeto é uma questão decisiva. Eu procuro várias coisas. Uma boa história que me faça pensar e sentir. Um livro é uma concessão que fazemos à nossa inteligência. Uma pausa no frenesim da vida, mas que funciona se ao lermos nos esquecemos daquilo que estamos a fazer, e nos sentimos vivos, a viver outras vidas e até a confrontar a nossa própria existência.
Este livro, pessoalmente, reconciliou-me com o romance em língua portuguesa de Portugal, porque é simples, compreensível, mas simultaneamente tem várias camadas, níveis de profundidade e possibilidades de leitura. Este livro é muitas coisas.
Céu Nublado com Boas Abertas é o seu título e podia ser uma epígrafe da existência.
Não falarei da trama do romance, fica esse enorme prazer para o leitor, apenas que se trata de um inteligente dispositivo em que se cruzam duas histórias, que dialogam entre si, a partir de épocas e personagens distintas. O narrador, que confessadamente é o autor, está, no inico do romance, na casa dos seus avós no bairro Lisboeta da Estefânia e regressa a um livro escrito pelo seu avô. Nesse livro em registo diarístico sobre a sua vida e com vários volumes, João Pereira Santos descreve especialmente a sua doença, a tuberculose, e os anos dramáticos de tratamento,a sua partida para o continente (Caramulo) em busca de uma cura após poucos meses de casamento e sempre sob o espectro da morte e da vontade viver.
Recordemos que a tuberculose matou alguém em praticamente todas as famílias portuguesas, era uma doença temível da primeira metade do século XX.
O narrador ao percorrer os livros que o seu avô tinha na sua biblioteca e ao guardar alguns dos volumes dentro da sua mochila, vê cair um papel de um deles, onde está escrito: «Se tiver um descendente que se interesse pela escrita, peço-lhe para ir a São Miguel e trazer no regresso um conjunto de histórias do presente da ilha» e um conselho: «que não se afadigue demasiado e que viva a vida que ele não conseguiu viver».
Neste romance estabelece-se assim um diálogo entre a narrativa da vida do avô (principalmente nos anos 40 do século XX) e a viagem do autor aos Açores na segunda metade do século XXI, seguindo o repto de procurar um conjunto de histórias.
Destaco a descrição rigorosa dos anos 40, das músicas aos filmes que passavam no cinema, das ruas de São Miguel a Lisboa e ao sanatório do Caramulo, as relação sociais, a mentalidade, a presença tutelar de um certo modo de viver a religião e os Açores em 2014, o cruzamento com traficantes de droga, strippers, massagistas, um émulo de Kafka e um chinês que é mordomo de uma festa religiosa, do espírito Santo.
Confuso? Pelo contrário, nem num único momento duvidei da coerência e verosimilhança de tudo o que é contado. Neste plano, é um livro de ficção absolutamente realista, e narra uma realidade que é na sua maior parte ficcional. Se não é tudo verdadeiro, poderia muito bem ser.
A fusão entre a realidade e a ficção é uma das grandes características de um grande romance. Ou não? Podemos afirmar que há vários critérios de gosto, várias regras para estabelecer a diferença entre a boa e má literatura, até cairmos no estafado debate da subjetividade do gosto e da relatividade dos critérios.
Simplifiquemos. Cada época valoriza critérios em detrimento de outros. Já foi decretado o fim do romance, a importância da ausência de narrativa ou mesmo de personagens ou história. Não nos metemos em caminhos que não levam a parte nenhuma. Regressemos ao simples e ao que permanece. Os seres humanos contam histórias desde sempre, para entreter, mas também para dar um sentido ao medo, à fragilidade e ao aparente caos e acaso da vida. Somos carentes de significados e de explicações. Uma boa história não tem preço.
O que leva à distinção entre os ouvintes (e leitores) de uma história e os narradores? Certamente alguns de nós contam melhor as histórias, têm mais para contar e sabem contar melhor, mas também porque sentem uma maior necessidade de contarem essas histórias. As palavras são meios modestos para explicarmos a existência, mas é dos mais eficazes que dispomos. Ora esta é uma boa história de um bom narrador. Nesta viagem imaginária encontramos certamente muito do que é o Nuno Costa Santos, do que pensa, do que o angustia, do que necessita, do que não encontra. A pessoa do Nuno e o escritor também se misturam e tornam inapreensível a distinção, embora ela exista.
Uma das dimensões centrais do livro, a homenagem ao seu avô, fez-me lembrar as palavras de um grande escritor, Sebald. Este falava-nos de um tempo, ainda recente, em que não se podia prescindir de ninguém, mesmo de um morto, e como este continuava a viver no meio dos vivos com a mesma ou maior importância.
Numa entrevista outro grande escritor, Thomas Bernhardt, era questionado se a escrita sobre lembranças e coisas pessoais era uma espécie de auto-libertação. Bernhardt respondeu que sim, que essas coisas estão dentro de nós, e queremos que elas saiam. Mas uma pessoa, escreve, e elas continuam lá. Tal como uma criança que tem dores, grita e é atendida ou leva uma bofetada e fica bem outra vez. Escrever, libertar essas lembranças e coisas pessoais é parecido. É como se a pessoa se esbofeteasse ao longo desse tempo e depois acalmasse um pouco.
A boa literatura provem de um desassossego, ninguém tranquilo, escreve. Cada auto-esbofeteamento é um livro, por vezes são necessários dois, três ou mesmo mais, para minorar essa dor. A dor não desaparece mas acalma. Penso que estes dois autores permitem compreender uma parte significativa do “espírito” que animou esta viagem.
Não entrarei em detalhes sobre a dor, ela está bem presente nas personagens do romance de modo latente. Essa dor é a manifestação aguda perante a perplexidade do que nos acontece enquanto seres vivos. Como seres conscientes não vivemos em total aceitação de tudo o que acontece. Encontramos até vários estados que poderíamos rotular de psicossomáticos, como a asma, a ansiedade, a insónia. Mas esta dor não é só mal-estar físico ou psicológico, tem uma origem mais funda, consequências da nossa inadequação constitutiva com o real, modo de estar próprio de seres conscientes, uns mais impressivos que outros. Nuno transforma também esse sobressalto de estar vivo e ser consciente em literatura.
Este livro é um relatório sobre a procura de uma resposta à questão “quem sou eu?” , ”que faço eu aqui”, respostas que bem podem ter um ponto substancial de partida, doloroso. Nada. Viver é uma agitação que muito deve a acasos e golpes de sorte e azar que modelamos de acordo com um acumular de experiências, mas também do modo como as enquadramos.
Quando as experiências singulares das personagens são também nossas, quando o particular se universaliza estamos novamente perante literatura da boa.
Pertencemos todos mais cedo ou mais tarde, a uma grande família, a dos vencidos, para os mais resilientes, ganhamos algo de significativo, o que vivemos. O importante é encontrar um equilíbrio, o equilíbrio dos vencidos, a vida, na melhor das hipóteses, é uma lição sobre o engano e o desengano.
O nosso narrador desloca-se ao sabor dos acontecimentos. Sabe que estes têm um poder sobre nós que só ilusoriamente conseguimos dominar. Há alguns recursos para ludibriar essas evidências, viajar no tempo e no espaço, estar disponível, procurar, mesmo que não se saiba bem o quê.
O Nuno regressa ao passado para compreender o presente, talvez ao procurar um sentido para a existência, descubra que ele radica, em nos tornarmos senhores dos nossos desajustamentos. A vida surge como uma figuração de um Deus cínico e cruel perante a nossa fragilidade. Estabelecemos os nossos hábitos e percursos, mais ou menos seguros, mas somos frequentemente abalados por pequenos e grandes problemas, acasos, golpes que tudo fazem ruir.
O desenganado não foge do mundo, não se esconde mas também não recorre à transcendência ou à imanência de uma qualquer sabedoria sem deus, antes transforma as suas deceções num manual de sobrevivência existencial, aceita as suas derrotas e apega-se às suas enfermidades. Nós somos as nossas doenças.
Podemos não acreditar na literatura, ela não salva, mas os livros que expressam o estado de ânimo de quem escreve e a necessidade profunda de nos libertarmos de algo, são poderosos interlocutores.
Este livro fez-me pensar numa importante posição filosófica sobre um dos temas mais acutilantes sobre o humano. “Quem sou?” não é apenas uma pergunta sobre uma pertença geográfica ou cultural. Alguns filósofos falam-nos da ilusão que temos uma identidade e um eu. Para David Hume não passamos de um feixe de perceções que se sucedem umas às outras, estando num fluxo e movimento perpétuos. A identidade é apenas uma representação de continuidades, um aglomerado de sensações. Estamos programados para nos apercebermos da identidade em nós próprios, mas apenas a mudança existe. Estamos configurados pela ilusão do Eu. Se só olhássemos para este mundo momentâneo, não agíamos. A individualidade é apenas um efeito secundário da natureza íntima da consciência e a vida interior é demasiado subtil para ser conhecida. A linguagem tem neste domínio um papel importante, conseguimos através dela olhar retrospetivamente para as nossas vidas, invocando assim um eu virtual. A ilusão de uma individualidade persistente emerge com a palavra.
John Gray em Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals refere como adquirimos o sentimento de nós próprios através do modo como na infância os nossos pais nos falaram, improvisamos histórias sobre nós, num monólogo interior intermitente e utilizamos a linguagem para construir uma série de futuros possíveis. É através da linguagem que inventamos esse eu fictício, que projetamos no passado e no futuro: Mas esse eu é problemático porque é fictício, e é uma frágil construção. Apesar do eu ser algo momentâneo e mesmo inapreensível a não ser como ficção, na consciência normal do momento presente, o sentimento da individualidade é inabalável (ao contrário da vivência de estados limite ou experiências que nos projetam para lá dos padrões da normalidade).
A escrita dá-nos o relato desse fracasso da identidade. Não acredito que algum escritor tenha morrido feliz. Queremos saber quem somos e consideramos importante dar noticias das nossas pesquisas. Transformamos as nossas necessidades numa ilusão sobre a nossa importância. E em alguns casos, ainda bem. É o caso do Nuno.
Num plano menos filosófico, se este este livro tem subjacente a procura dos fios que tecem as existências, as ligações e os fundamentos que sustentam a vida, tem como pano de fundo um poderosa personagem, os Açores. Não é um livro de literatura açoriana, seria redutor essa catalogação, mas é também um livro sobre os Açores (mesmo nas várias dimensões temporais, presente e passado, que se tornam contínuos neste livro). As ilhas são seres vivos.
A questão da identidade é de novo fundamental. O narrador, viveu até aos sete anos em Lisboa, depois vai para os Açores até à adolescência e regressa a Lisboa. Em Lisboa não se sente totalmente Lisboeta, mas quando regressa aos Açores, que ganha uma força quase mítica, também não se sente Açoriano, não é visto como tal, é um outro. O pano de fundo, Continente e ilhas, poderia aplicar-se a outros contextos sobre a importância e instabilidade de pertencer a algum lugar ou alguma coisa. Quando deixamos de pertencer totalmente a um lugar, acabamos por não ser de lugar nenhum. Voltamos invariavelmente a esse lugar, à procura de algo que já não existe e provavelmente nunca existiu. O Nuno é um português com aspas. “Este é o meu povo e ele não quer saber de mim”. Na verdade acabamos por pertencer apenas a nós próprios, e mesmo a percepção de continuidades que permitem essa certeza, destabilizam-se com frequência.
De qualquer modo, na questão significativa da literatura e dos autores açorianos, este é incontornavelmente um livro marcante, se este livro é literatura da boa, no caso especifico da literatura açoriana, esta não poderá passar sem ele.
O modo de estar, as relações entre homens e mulheres, a imigração, a grande guerra, os que partiram e os que voltaram, os sucessos e os fracassos, as romarias, uma descrição minuciosa da topografia, ruas lugares, as pessoas da ilha de São Miguel, a caça à baleia, a rivalidade entre ilhas, a sua flora, o clima, a geografia, os sismos, as expressões regionais, a vivência da fé e de deus, a pedofilia, a relação com o continente, a miséria dos camponeses, os escritores açorianos (Emanuel Félix, Eduíno Jesus, Antero, Manuel Ferreira) atravessam de modo incisivo todo o livro, revelando um trabalho de uma minúcia extrema. A passagem dos Açores do século XX dos anos 40 para o século XXI está neste livro. Como também Portugal.Esse trabalho de pesquisa está também presenta na questão da doença do avô.
Duvido que exista descrição mais precisa sobre a tuberculose, e até me atrevo a dizer mais, não conheço na literatura portuguesa a abordagem da questão da doença (seja ela qual for) como o Nuno a trata. A sua minúcia dá também a todas as personagens uma densidade que as torna reais e humanas, e não apenas caricaturas.
A vida, a morte, o amor e a doença são os grandes temas da literatura e estão em todas as páginas deste livro. Assim como o egoísmo, o ressentimento, o medo de nós próprios, o rancor, tão viscerais com as enfermidades físicas. Este é um livro suave mas duro. Perpassa-o uma tristeza amena mas profunda que é uma espécie de metabolismo intelectual do narrador, modo dele conhecer e se relacionar com o mundo.
O Nuno é um grande observador, tem uma sensibilidade extrema e escreve muito bem, tem na sua escrita o boletim da sua meteorologia sentimental, afetiva, psicológica e filosófica. Um grande autor.
Partir de um diário de um familiar e transformá-lo em matéria literária, transformar a procura do que sou em matéria ficcional, transfigurar experiências particulares em aspetos em que todos nos podemos reconhecer, é trabalho apenas acessível a um grande escritor.
Numa passagem do livro descobrimos que se o narrador tivesse aprendido a surfar, não teríamos escritor. Neste caso, ainda bem que não aprendeu a surfar.