Os livros são coisas polifacéticas, têm muitos lados por onde se podem pegar, o que quer dizer que têm abrangências que acabam por conseguir tocar em partes distintas de pessoas distintas com as mesmas frases, as mesmas letras. Os significados, ou mais rigorosamente a combinação de significados num livro, é o livro em aberto, aquele que cada um de nós encontra. E digo livro, e não romance ou novela, porque reconhecendo o ofício há aqui um objecto, um objecto-livro que para Nuno Costa Santos e boa parte dos que estão metidos na mesma furna onde se cozinha um caldo de coisas distintas, significa uma manifestação por uma cultura, pop se assim a quisermos chamar. Será sempre uma definição redutora, pop tornou-se demasiado grande e demasiado pequeno, mas passou por todos nós como a expansão violenta do ar pelo espaço depois de uma explosão, passou pelos nossos corpos deixando neles estilhaços de tudo o que antes era sólido. É nisso que há aqui pop.
Este livro contém também uma paisagem, a de São Miguel, e é essencialmente sobre essa paisagem. Acontecem coisas e vivem pessoas nessa paisagem, o livro é disso um registo. É um registo em sobressalto, em confronto e até em violência. É por isso que não se ouve em nenhum momento uma música dos Cocteau Twins. Essas pertencem ao aconchego húmido dos regressos à ilha pelo Natal, quando tudo é melancólico e doce. Quando não há ruído nem sobressalto. Não há confronto. Falarei de três coisas deste livro: de um ofício, de uma paisagem e de um autor.
I
Já dei por mim a pensar sobre contiguidades entre a literatura e a arquitectura, o meu defeito profissional, e na forma como dentro da cabeça de um autor as coisas se formam. Julgo que funcionamos ambos por imagens alargadas, como se diz agora, que contêm cheiros, sons, tactos, a que antecipamos o sabor no momento em que lhes estamos a dar forma. Tanto disto está neste livro.
(Esta paisagem presta-se a isto, quem esteve em São Miguel sente nela o cheiro do jogging no Pópulo tanto como nas digressões de carro pelo interior da ilha pelo meio dos pastos com a música como contexto e como tempero).
Mas aqui interessa-me a formulação das imagens. Elas não são estáticas, são cenas em movimento com pessoas e objectos, aproximam-se mais do cinema do que da fotografia, e são fugidias. O esforço da escrita é dar-lhes texto, fixá-las, nomeá-las. Dar-lhes lugar, ambiente, acção. Viver nelas. As cenas combinadas criam um corpo, uma narrativa se dela o corpo precisar. Escrever é um ofício de construção. A realidade do livro é tão válida como as outras. Viveremos aquilo que queremos viver se formos aquilo que quisermos ser. Uma quimera obviamente. Viver, como construir, é uma quimera.
Na literatura vive-se o que se quer escrever. Na arquitectura vive-se o que se quer construir. A arquitectura como a literatura empapa-se do que vê, escolhe do que vê o bem e o mal que lá está e faz. Partem da memória, uma desenha outra escreve, mas procuram no corpo do autor uma coisa qualquer que possa vir a ser forma. Esta coisa da captura do que está em nós sem forma física ou representada faz delas semelhantes mesmo que com ofícios diferentes.
O ofício é uma coisa difícil porque ser-se laborioso e preciso pode significar ser-se indistinto, ser impressivo pode significar ser-se retórico, ser generoso ser porreiro e sentir pode ser lamechas. Escrever, escrever bem, não é um acto de nudez, um striptease com ou sem varão. É o contrário, é escolher o que se quer vestir e o cenário onde se quer ser visto. Pela parte que me toca tenho sempre uma predilecção pelos autores que se deixam ver como na cena final da Dama de Xangai de Orson Welles, numa sala de espelhos com o centro vazio. Nuno Costa Santos há-de andar por ali, de copo na mão, observando. Ouvimos a sua banda sonora e o espaço onde nos faz ouvi-la, reconhecemos os cheiros que nos faz lembrar. Sem reticências nem pontos de exclamação. Comovemo-nos como a Ruiva do Pico conduzida pelas veredas ao som de Paul Buchanan quando já longe da utopia finalista da luta da vaca com as moscas junto à janela da casa onde no interior o seu corpo picante e os peitos bonitos ofereciam uma massagem grátis. Tudo nas calminhas.
II
A paisagem é um postal tão belo, tão totalitariamente belo que pode com facilidade engolir os seus habitantes.
A paisagem de São Miguel é o centro do livro. O que não significa que ele seja uma sua descrição, é muito mais uma condição. É uma condição tão poderosa que nenhum dos personagens lhe escapa. Chegar a uma ilha dos Açores é uma experiência física transformadora. Literalmente. Sai-se do avião, do ar condensado do avião, para o exterior e sentimos que perdemos centímetros. A pressão do ar comprime-nos de tal forma que não temos dúvidas logo ao início de que entramos num território diferente. Não reconhecemos de imediato o cheiro que mais tarde não nos sairá da memória. O resto já intuímos do ar, a quantidade de mar e o que há de terra. E o céu que é, mais do que a terra, o que determina cada ilha. Não é a terra que caracteriza as ilhas mas o céu que paira sobre elas e para cada uma há um céu distinto. A isso também se refere o título do livro. A terra faz as pessoas mas o céu molda-lhes o carácter. O livro vai fazendo uma transição na descrição da paisagem, à medida que vai avançando vai-se perdendo o céu que é na realidade a âncora do narrador que, por ele, preferia ter aí os pés.
(Quando aí estou recordo-me vezes sem conta de Jorn Utzon, o arquitecto da Ópera de Sidney, que farto de desenhar as formas sólidas da terra dedicou cadernos à procura das formas que existem nas nuvens do céu. E em São Miguel convém ser rápido porque tudo muda de forma a desafiar a nossa atenção).
É curiosa a forma como o céu vai desparecendo no livro. Praticamente deixa de existir depois da noite que o narrador passa na prisão sem ele, ou melhor, quando o vê representado no tecto escalavrado de uma cela. Como é eficaz o desvanecimento ao longo da narrativa da sua confiança científica à medida que a taxonomia das espécies vai deixando de poder compreender tudo o que lhe vai acontecendo.
Bernardo Soares fala-me ao ouvido: ”Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço. Se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa”.
Reconheci das minhas visitas frequentes à ilha muitos dos factos que vão existindo pelo livro, a mais evidente terá sido a sua invasão por pacotes de cocaína quase pura que tanto tremor causou. Mas a história das ilhas dos Açores tem estes relativismos que nos vêm do que nelas se vê. O que permite que os poetas de serviço, como aqui um aparece, pareçam ser cronistas de uma realidade que se vive bem assim, de forma difusa. E é uma tradição esta de contar o que se soube de todas as criaturas que ao longo do tempo foram passando por este lugar - ele próprio difuso - para quem o vê de fora ou só o conhece pelo anticiclone. Há uma tradição de personagens pitorescas que se mantém viva e elas parecem sobreviver na paisagem. Como uma espécie de homem santo que vagueia pela ilha de terço na mão rezando por todos, uma possível representação de uma fé genuína distinta da instituída, dos colégios, conventos, seminários e procissões.
Chega o homem. É ele, só pode ser ele. Reza, reza num tom de voz nem alto nem baixo o credo – sem vergonha, sem medo, sem pressas, sem calendário. Os cabelos, brancos, longos, demasiado longos para os padrões de uma freguesia rural micaelense. Presença tão extravagante como enquadrada na arquitectura da rua. Excepção aceite pela paisagem.
Mas há também aqui uma ilha que Nuno Costa Santos traz para a sala de espelhos e que não é tão fácil de ver. Os Açores são ainda uma sociedade altamente segregada e de enormes clivagens sociais. Entre classes, entre as cidades e as freguesias, entre o mundo visível e o que está submergido pela pura recusa de o ver. Os repatriados que cumpriram pena nos Estados Unidos e no Canadá que regressam para as comunidades que, fora das suas famílias, não podem admitir um resultado tão indigno de uma emigração que é tão grande como as ilhas todas juntas. Este estar separado por que todas as famílias passam, os açorianos de cá e os de lá e que fazem dos Açores em Agosto uma espécie de fusão de ambos os lados do Atlântico. A América, tão forte como o céu, volta sazonalmente para a celebração do Espírito Santo que só a condição de ilhéu, um ser com uma tolerância particular, parece poder tornar resolúvel. Talvez ao som do Wish you were here dos Pink Floyd, aqui uma espécie de música plenipotenciária que cruza coisas incompatíveis.
Durante a descolagem espreito pela janela. As tonalidades do verde das pastagens e das matas, a ilha cercada por uma muralha de basalto que a rodeia e protege. E a bruma, barba de um Deus do absurdo. Vejo as casas, cada uma delas. As pessoas lá dentro, pequenas, muito pequenas perante uma paisagem alheia a qualquer olhar humano, a qualquer dicionário.
A minha experiência enquanto ilhéu de empréstimo recorda-me muitas vezes o nenúfar que cresce no interior do peito de Chloë na Espuma dos Dias de Boris Vian. Respirando aquele ar durante tempo suficiente, estar torna-se tão difícil como partir.
Em São Miguel o absurdo pode ser tanto uma condição existencial como uma cerveja com camarão no Cais 20. Uma alergia desconhecida.
III
Céu Nublado com Boas Abertas tem um motivo, o relato da experiência de um avô do autor e dos seus seis anos de coexistência com uma tuberculose que o afastou recém-casado da sua ilha para um Caramulo próximo da Montanha Mágica de Thomas Männ. Do estranhamento que a distância e a condição precária causou. Na realidade são duas histórias que coexistem no mesmo livro, uma factual, documentada com imagens, e uma outra que se desloca da anterior. Uma que está desesperadamente fora da ilha e outra desesperadamente nela. Uma fala da perda de um pulmão a outra de asfixia. Ambas falam de como se transporta um lugar dentro do corpo.
Revejo-me bem na narrativa deslocada de Nuno Costa Santos, tanto que me sinto parte da mesma panela e da mesma furna onde está o cozido que referi no início desta apresentação. Pegando numa ideia de Bernardo Rodrigues, um amigo comum com singulares capacidade plenipotenciárias (como a música dos Pink Floyd), há um lugar onde nos encontramos comprimidos entre tempos distintos a que parece difícil uma noção de escala e de pertença. Quero dizer a explosão pop que atrás referi não fez do autor deste livro parte de uma visão nostálgica de um passado recente que se revolve perante o futuro que se apresenta. Nem faz dele uma sonda do que está por vir porque da memória há um lastro profundo e nenhuma vontade de se livrar dele. Há sim um desajuste ou uma deslocação. Não há uma moralidade no conflito religioso que está latente em todo o livro, nem uma amoralidade na confrontação com as formulações que se lhe apresentam. Nem um relativismo desculpador de ambas.
Por um acaso encontrei finalmente um livro que procurava há alguns anos enquanto escrevia este texto, Homo Ludens de Johan Huizinga. Fala sobre o jogo, sobre a dimensão lúdica nas relações humanas e do quanto essa dimensão se torna perturbadora das relações estabilizadas de poder e de autoritarismo. Ao mesmo tempo fala das regras do jogo, do seu estabelecimento e da aceitação da sua condição improdutiva. Fala por isso da liberdade do jogo, de o aceitarmos e de compreendermos a necessidade de perceber formas não estabelecidas de representação do real. O jogo que no início do livro anuncia Nuno Costa Santos através da citação que faz de Enrique Vila-Matas:
Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa.
Texto de Bruno Baldaia, na apresentação de Céu Nublado com Boas Abertas, de Nuno Costa Santos,
no dia 29 de março, na Fnac de Santa Catarina, no Porto.