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A Revista Sítio (agora no endereço http://revistasitio.blogspot.pt/) dedica esta semana à poesia de João Luís Barreto Guimarães, cujo novo livro, você está aqui, chega às livrarias na sexta-feira. A anteceder a notícia da publicação deste inédito, o livro Poesia Reunida, publicado em 2011 pela Quetzal, teve direito a uma recensão crítica, da autoria de Landeg White, no The Times Literary Supplement, um facto que justificadamente nos enche de orgulho.
Para os nossos leitores que não puderam estar presentes no Dueto Improvável do passado fim-de-semana, que decorreu na Feira do Livro e juntou o poeta João Luís Barreto Guimarães e o "cruzadista" (ou cruciverbalista) Paulo Freixinho, aqui fica o texto lido pelo primeiro:
"Não é fácil para um poeta que acaba de reunir a sua obra, e não encontra nas cerca de duas centenas e meia de poemas que a constituem mais do que 2 ou 3 referências a “Palavras Cruzadas”, esboçar um pequeno ensaio sobre uma possível relação – tão ao gosto da Manuela Ribeiro e do Francisco Guedes, das Correntes d’Escritas, - entre “Palavras Cruzadas” e “Poesia”.
Na verdade, as referências a “Palavras Cruzadas” ou “cruzamento de palavras” na minha poesia são tão naturalmente escassas, que são fáceis de enumerar: no poema de “Este Lado para Cima” (1994), “disponho os amigos pelas paredes do quarto”, o gesto de abrir o jornal nas palavras cruzadas e constatar que já foram feitas é comparado ao instante em que se descobre que um amigo nos desiludiu; no poema “Segundo café da manhã”, de “Luz Última” (2006), a procura de um sinónimo (com 5 letras) para a palavra “regime” por uma funcionária pública obesa é comparada à eterna cruzada pela qual a mesma passa para emagrecer, sendo a palavra “dieta” a resposta aos dois problemas; e o poema “D.N.A.”, de “A parte pelo todo” (2009), cujo enunciado pode ser visto como um enunciado típico de palavras cruzadas, acaba por se constituir, pelo contrário, como uma falsa pista já que a conhecida expressão anglosaxónica correspondente a “ácido desoxiribo-nucleico”, a fonte da vida humana, acaba por ser transformada - num momento de ira contra o Divino, própria das fases do luto, perante a perda de um familiar, - na provocação latina “Deus non auctoris”, para melhor compreensão e ofensa ao Criador.
Excluindo estas situações nada, ou quase mais nada. Porém, não posso ignorar o jogo que se pretende que eu estabeleça hoje com o meu companheiro de mesa, Paulo Freixinho, que publicou um divertido e interessante livro na Quetzal, sobre Palavras Cruzadas e Literatura. E não me furtarei a esse jogo, tanto mais que devo a Paulo, a minha primeira aparição desde sempre na revista Caras, uma importante publicação cujo reconhecimento eu perseguia há já quase 25 anos, sem nunca ter tido a honra de figurar em suas páginas, até finalmente pela mão dele ver concretizado esse sonho na resposta 51 VERTICAL das palavras cruzadas.
As semelhanças entre a “Poesia” e “Palavras Cruzadas” não são tão ténues quanto à partida podem parecer, o que torna este dueto mais do que improvável, possível. Quem nunca se entregou minutos a fio a uma grelha de palavras cruzadas, procurando le mot juste, como um poeta procurando a palavra em falta no poema?
Devo dizer ao Paulo, e aos leitores que têm a amabilidade de nos estar a ouvir, que na minha opinião as potencialidades das palavras cruzadas não ficam nada a dever às da poesia, e conseguem inclusive coisas que a própria poesia, com todos os seus recursos estilísticos não consegue. Apenas um exemplo: como todos sabem, a metáfora é uma figura de estilo que consiste na comparação de dois termos sem o uso de um conectivo. E – isto até pode parecer perseguição da minha parte, - mas não me ocorre uma boa metáfora que consiga relacionar em poesia, por exemplo, as expressões “Vítor Gaspar” e “abundância”. Simplesmente não me ocorre. A tanto não chega nem a minha criatividade, nem a minha inspiração. Mais depressa encontraria um verso que relacionasse o vocábulo “Noruega” com a palavra “abundância”, ou a expressão “Vitor Gaspar” com “estamos fritos”.
Mas imagino que o Paulo, sem grande esforço, os consiga relacionar, simplesmente cruzando um dos “a” de “Gaspar” com um dos “a” de “abundância”, ou mesmo cruzando o “i” de “Vitor” com o “i” de “abundância”. Este simples exemplo bastaria para provar que as palavras cruzadas podem coisas que a própria poesia não pode. Ainda por cima em forma de cruz, símbolo esse tão ao gosto da poesia visual, da poesia concreta, algo que metaforicamente transmitiria ao leitor a imagem daquilo que por estes dias de crise cada um de nós transporta às costas.
Mas a poesia, por sua vez, também não deixa de piscar o olho às Palavras Cruzadas, por exemplo, nos chamados poemas acrósticos que são, nem mais nem menos, aqueles poemas onde as primeiras letras de cada verso, se lidas na vertical, formam uma palavra ou frase com a qual se pretende sublinhar um mote - ou esconder uma mensagem secreta, - por exemplo, o nome da amada a quem é secretamente dedicado o poema.
Devo confessar que antes de vir para cá, estive a semana inteira a reler esse curioso hebdomadário chamado Diário da República para tentar perceber se a primeira letra de cada um dos últimos 14 decretos-lei publicados pelo Ministério das Finanças nos últimos meses, quando lida sequencialmente, encerrava alguma mensagem subliminar, como fosse, por exemplo, uma dedicatória lírica do género:
“ D-O—V-I-T-O-R,—C-O-M—A-M-O-R. “
Devo confessar que fiquei um pouco desiludido ao constatar que não. É que, a estar lá escondida alguma mensagem, isso tornaria a coisa um pouco mais tolerável: o Dr. Vitor Gaspar ter aproveitado a primeira letra do incipit dos últimos 14 decretos-lei para, vá lá, um pouco timidamente (quase às escondidas), me ter “passado a mão pelo pelo”. Assim, sem essa dedicatória, considero que apenas me passou a mão.
Pela minha parte, nunca entrecruzei palavras num poema para escrever um poema acróstico. É uma falha da minha obra, “Poesia Reunida” que - não me canso de o dizer, - está à venda ali, no stand da Quetzal. A vez em que estive mais próximo de o fazer aconteceu quando sabendo da intenção familiar em plantar um fio de árvores de fruto numa língua de terra para onde a família foge ao fim-de-semana do bulício citadino, sugeri que se plantasse sequencialmente a Cerejeira, depois a Ameixoeira (de frutos vermelhos), depois o Limoeiro, depois a Macieira (bravo de esmolfe) e, por fim, a Ameixoeira (de frutos amarelos), - um Cê, um A, um éLe, um éMe e um A, - para que, quem por lá passasse nas décadas seguintes pudesse ler naquele pequeno pomar, a C-A-L-M-A que o envolvimento campestre sugere, tão ao gosto do Dr. Sousa Homem. Foi o meu primeiro LAND POEM.
Já vai sendo tempo de terminar este texto. Eu poderia muito simplesmente ter resolvido a questão afirmando que “Palavras que se cruzam com a poesia” são todas, podem ser todas, como defendia William Carlos Williams e provaram o poeta Manuel António Pina e, mais recentemente, José Miguel Silva, ao usarem, imagine-se!, a palavra “iogurte” num poema: o primeiro, no contexto de uma elegia dedicada aos cuidados prestados a Eugénio de Andrade no final da sua vida, o segundo, no contexto de uma muito pessoal visita a Florença.
Talvez porque o mais interessante de tudo seja isso mesmo: a forma como as palavras que escutamos todos os dias, no metropolitano, nas repartições públicas, as palavras que lemos nos jornais, num bom livro, se vão gradualmente tornando nossas, principalmente quando as roubarmos a territórios estranhos e delas fazemos poesia. Como se terá cruzado Cesariny com a palavra “prestidigitador”? Saberá Luís Quintais que quando me cruzei com a palavra “esboroar” num dos seus poemas lha roubei para o meu poema “Pétalas sobre a cabeça”? Como se lembrou O’Neill de cruzar as palavras “outono” e “alma” e inventar essoutro vocábulo “outonalma”?
Termino com um texto do meu livro “Lugares Comuns”, (2000), que não fala de outra coisa senão disso mesmo, do cruzamento de palavras: numa folha de ar ou no espaço do poema.
20 de Junho
Primeiras horas da manhã. Um Café está sempre à espera, as palavras demoram-se e conversam sobre a mesa, usando o espaço do ar para tocar a fala dos outros, contribuindo para criar, pelo cruzamento de sílabas, palavras hermafroditas de sentido fragmentário, o idioma do Café.
O burburinho gerado fala uma língua própria, somente inteligível pelo empregado de mesa. Vejo-o serpentear pela sala num jogo de decifração, escutando na mesa da frente a resposta à pergunta lançada na mesa anterior, descodificando murmúrios, traços de inconfidências, irreveláveis segredos.
A moeda sob o recibo vai comprar o seu silêncio.
João Luís Barreto Guimarães"
"[...] se estes são poemas sobre o quotidiano, nem por isso resvalam para fórmulas feitas, retoricamente reconhecíveis em tantos outros poetas que quiseram ver na poesia de circunstância ou quotidiana uma forma, ora subtil, ora declarada, de prestar vassalagem a um tom dominante. Não é o seu caso porquanto, retoricamente, estejamos na presença de uma obra que faz estilhaçar, no ato mesmo de ser quotidana, os seus modos de o dizer e apresentar."
Recensão de António Carlos Cortez a Poesia Reunida, de João Luís Barreto Guimarães, no Jornal de Letras
"Exemplar na arte da observação, o poeta recolhe acasos e gestos, pequenas epifanias, histórias breves, o trabalho da melancolia. Uma melancolia que ganha terreno na terceira fase, a dos últimos livros, muito atentos aos rituais quotidianos, aos estragos que a rotina provoca nos corpos e nos espaços domésticos, ao confronto com a ideia da morte e da perda. Por muito que J.L.B.G., médico de profissão, afirme que a poesia é uma "doença" que não se deseja a ninguém, a verdade é que ele só sabe escrever "de dentro da vida" e faz sempre da vida (e da escrita) uma celebração."
José Mário Silva, Expresso
Texto do poeta e tradutor Vasco Graça Moura para a apresentação do livro Poesia Reunida, de João Luís Barreto Guimarães. Agradecemos ao autor a autorização para divulgação do texto:
De 1989 a 1994, a poesia publicada em livro por João Luís Barreto Guimarães segue um modelo formal muito estrito. O do soneto. Não se veja nisso um cultivar de velharias de museu literário– o soneto é uma forma venerável com mais de 700 anos – mas uma procura de inovação que, do soneto tradicional, mantém quase sempre a arrumação de cada peça em duas quadras e dois tercetos, não necessariamente por esta ordem. Pelo contrário, alternando a sequência de caso para caso, o autor procura uma elasticidade total no permutar da ordenação estrófica, a que vai correspondendo uma escrita poemática que se afasta por completo da métrica e da prosódia tradicionais, apostando quase sempre em versos longos com enjambements e partições mais ou menos arbitrários, aproximando-se da prosa, mas sem resvalar nela, como propunha Eugénio Montale. Mais tarde, vem uma pergunta nesse sentido: «que te ensinaria eu se / me falasses do Tratado de Tordesilhas / entre prosa e verso?»
Podemos assinalar nesses primeiros textos, uma espécie de poética ziguezagueante sobre o real, procurando cruzar fronteiras e provocar intercepções de planos, convocando segmentos e fragmentos muito diversos, sem recuar ante os desafios de uma experimentação ousada. É uma poesia cerebral, pensada a frio até nas suas próprias ingenuidades, com vista a produzir certos efeitos, recorrendo a símbolos e signos gráficos por vezes com alguma carga enigmática ou enunciado fonético quase impossível, feita sobre ironias e humores quotidianos, interpelando um «tu» que tanto pode ser o próprio autor no espelho da sua escrita, como alguém exterior a ele, lançando mão de uma linguagem em que o poema aprende a referir-se ao, e a reflectir sobre, o próprio poema na sua relação com o tempo e o espaço e nas suas implicações com o mundo.
Logo a abrir, lemos que «o tempo avança por sílabas», bela maneira de caracterizar o poema como arte medida do tempo e da palavra, ou da palavra no tempo. Noutro texto, fala-se em «perder o lugar das coisas / ganhar o silêncio do sítio por elas desocupado», por sinal pouco antes de se dizer «esqueço por isso a pergunta: qual a regra do acaso?». Octavio Paz, chamava à poesia «hija del azar, fruto del cálculo». A pergunta sobre qual a regra do acaso é, a meu ver, um elemento importante para compreender a poética do primeiro João Luís Barreto Guimarães: procurar uma regra, isto é uma necessidade, uma regularidade, uma lei, no plano do próprio acaso, dos impulsos mais ou menos desencontrados ou desorganizados que o mundo faz reverberar na sua palavra. Talvez por isso, uma voz diz, mais adiante «ainda não entendi bem a tua forma de escrever» e também: «porque escreves / na primeira pessoa? Quantos mitos inventaste até ontem?».
Este tipo de questões, prolonga-se pela metáfora implícita do gravador tanto associado aos verbos — e a categoria dos verbos está normalmente conotada com a noção de acção — como a uma manipulação da palavra e dos seus processos, quando o tempo desses verbos é «um rio de águas lestas / play rewind fast forward pause record stop eject». Trata-se portanto de um processo que pode ser executado, recapitulado, acelerado, desacelerado, interrompido, retomado, terminado. É desse processo que resulta o poema.
Há assim em João Luís Barreto Guimarães uma preocupação reiterada com a dimensão metapoética, com a reflexão sobre o poema, os seus limites, os seus recursos, a possibilidade de questionamento dos seus objectivos.
Há mesmo uma pergunta sobre «quanto falta para / a perfeição?». E ocorre uma oscilação, uma certa pendularidade, entre a questão da perfeição e a da procura, tal como o autor a enuncia: «a procura / é parte integrante do poema não pode ser / vendida separadamente». Estas questões também se implicam na existência e nas suas ácidas ironias em jeito coloquial, como nestes versos cuja interpelação me faz lembrar o célebre «Olha, Daisy» de Álvaro de Campos:
sabes? minha amiga: esta vida é como um barco
a boiar (tem o seu quê de técnica). como ? não
apanhaste a ideia? finges (penso) apenas finges.
e há quem diga: estas águas são o atlântico.
Depois de Há Violinos na Tribo, em que cada uma das partes, «lado um», manual do engano e «face b», as pistas, tem catorze peças, numa significativa preocupação com a estrutura em sonetos, no segundo livro, com o título propositadamente absurdo de Rua Trinta e Um de Fevereiro, os textos tornam-se mais ambiciosamente metafísicos e também mais coesos e o sistema de alusões culturais e científicas é mais explícito, embora aqui e ali haja ainda reincidências na quase indecifrabilidade de certos códigos de letras e números, ou num certo ludismo experimental ou gráfico. Pelo menos num caso, a chave é fornecida numa espécie de nota de rodapé que permite ler o segredo dos sétimo e oitavo versos do soneto (p. 64): ÀS DUAS NO CAFÉ. A SENHA É GATO AZUL... A reflexão sobre os limites do poema e do soneto é processada dentro de coordenadas mais precisas. As respostas às questões tornam-se aparentemente mais claras, dispensando o sentido oculto das coisas:
[...] eis que tudo
quanto é sonho se torna real tudo quanto é
temporal ocorre agora dissipando eventuais
porquês perante a real forma das coisas
No terceiro ciclo de sonetos, Este lado para cima, vale a pena destacar a continuidade de uma certa fascinação com o registo sonoro, que já tinha dado antes as alusões aos processos do gravador. Aqui, a questão metapoética combina-se logo a abrir como o símile do disco estragado e do poema como qualquer coisa que se liga como um aparelho, num texto que assim é capaz de restituir uma avaria com toda a precisão e que me parece de uma segurança, de uma eficácia, de uma ironia fora do comum. Vale a pena citá-lo na íntegra, porque ele não apenas questiona a natureza do poema, mas também entra na questão daquilo que o poema diz e da carga de informação que pode (ou não) conter:
põe um disco a correr. a chuva não demora
mais que o esvaziar das nuvens se te
confessasse as coisas que já atirei ao mar
(o revólver do crime palavras numa garrafa)
não darei nome ao poema seria como quem
coloca legendas aos dias e eu: sou como
água (tomando forma nos lugares que molha)
vou repetir (para quem só agora ligou
este poema:) no cesto de frutos da mãe
as estações do ano sucedem-se e o disco
era um disco tão antigo tão antigo que
a certa alturantigo tão antigo que a
certa alturantigo tão antigo que a certa
alturaantigo tão antigo qu
Uma equivalência a esta situação de avaria, quando ela não é do disco, pode ser a da máquina de escrever, uma «Corona Four / uma azerty americana», que interfere na mensagem e a desfigura parcialmente por as teclas já não comandarem todas as letras, tornando necessário um exercício de restituição: «depois eu mando alguém / uscar as minhas palavras».
Os sonetos de João Luís Barreto Guimarães funcionam assim como pequenos aparelhos de interrogação e reconstrução do real, a partir da simulação das suas próprias falhas. São peças literárias entre o cerebral e o lúdico, em registos em que predominam as intenções de vanguarda, deixando pouco espaço para a emoção. Há também um lado de «instalação» em várias destes poemas. E é exactamente nessa medida que me ocorre um texto de Jacques Roubaud, que passo a traduzir:
— Um soneto é um objecto de arte? — Cada vez mais,
— Pensas o soneto como uma instalação
De letras e de brancos? — Sem dúvida. A emoção
Está na apresentação sobre a página lida
Em memória. — Um soneto seria emocional?
— Sim. As suas divisões impõem-no. Mas nenhum verso
Tem emoção.
O tempo de que disponho não me permite deter-me muito nalgumas partes desta Poesia Reunida. Saltarei por isso os poemas em prosa de Lugares Comuns e farei uma brevíssima abordagem de alguns aspectos da poesia de Rés-do-chão (2003), Luz Última (2006) e A Parte pelo Todo (2009).
Rés do Chão é um livro que deixa os sonetos para trás e explora, num registo muito sóbrio, o quotidiano de uma conjugalidade doméstica. O metro torna-se mais curto, chegando a extremos mono e dissilábicos, como em «Não gosto que faças isso» (p. 180). A versão de situações aparentemente anódinas da vida de todos os dias, por vezes, entreabre-se para significações que são da ordem do simbólico: «Ateámos a lareira com / as notícias da véspera / devolvemos à verdade sua condição de cinza». À sua maneira, e já muito distante da experiência sonetística, esta é uma poesia do amor e da pax domestica, da quietude e tranquilidade do lar e das pequenas observações e meditações sugestivas, a propósito de tudo e de nada, como esta, sobre o puxador (avariado) da porta da cozinha, mostrando mais uma vez a utilidade da noção de avaria para a poética do autor:
Como não estranhar a absurda
ausência da avaria?
Deixa-o
ficar assim. Deixa-o andar assim
(ternamente avariado)
A problemática da metapoesia e das questões do poema, surge com menos frequência, embora ecoe ainda aqui e ali, por exemplo em «Escrevendo Pétalas sobre a cabeça» em que o poema reflecte sobre o poema anterior e onde se observa que ele «insistiu em fazer-se / ( de tradição e ofício)». Não sendo esta uma poesia propriamente musical no sentido tradicional deste adjectivo, note-se que a dicção se torna muito mais segura e nítida, encontrando uma respiração própria, as inflexões, as cadências e os ritmos mais ajustados, tudo quase sempre servido por uma elementaridade ou por uma simplicidade que torna ainda mais eficazes alguns jogos dentro do verso (p. 227; outro caso «A uma jovem rapariga», p. 242. E ainda a p 248, em que os versos irregulares ganham uma cadência quase regular de redondilha...[ler das duas maneiras])
O sistema de referências enriquece-se por associações inesperadas, mas plausíveis, como a forte sugestão visual por que são implicitamente comparadas as manchas resultantes da perda de óleo do motor do automóvel sobre o cimento a um quadro de Pollock com laivos de Gracinda Candeias, a relação entre elas e o modus operandi do poema.
O quotidiano amplia-se à evocação e ao trabalho de luto pela morte do pai. Há uma dimensão de memória e identidade recuperada e explorada a partir de dessa figura. Fica-nos, desses textos da última parte do livro, a imagem do pai e um recuar da presença de Deus; a passagem por lugares e paisagens e, last but not least, a própria experiência da prática clínica, dando ensejo a uma das mais belas meditações sobre o tempo, o envelhecimento e a perda da beleza feminina da nossa poesia mais recente, com a subtil paronímia do final «dano a dano» (a escala crescente dos danos) subentendendo-se «de ano a ano» em vez de de década a década: Botox (p. 298).
São também dadas algumas respostas (ou que podem ser tomadas como tal) a questões de identidade postas na primeira fase do autor. Por um lado, o interlocutor possível é convocado (convidado) no poema final, com indicações descritivas para o caminho até ao lugar de acolhimento, a casa do próprio poeta, o lugar onde ele está, mas acontecendo que qualquer encontro possível é deixado ao critério do visitante possível:
Toca no sexto direito. Estou
sempre por aqui. Ou senão
não venhas hoje.
Faz como te apetecer.
Por outro lado, sabemos finalmente quem pode ser o tu que os sonetos interpelavam.
O nome que tu transportas é o nome
onde és tudo. O nome: és
tu que o és. Em teu nome
tu és tu.
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