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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

Frederico Lourenço, em resposta a alguns reparos, explica por que razão optou por traduzir o tradicional «Filho do Homem» por «Filho da Humanidade».

 

«O FILHO DA HUMANIDADE» e «UM ESPÍRITO SANTO»


A contemporânea acessibilidade via Messenger e Email faz com que a minha experiência de traduzir a Bíblia seja muito diferente (julgo eu!) da de todos os meus antecessores. Nem São Jerónimo nem João Ferreira de Almeida passaram pela fascinante experiência de receber, quase todos os dias, no computador e no telemóvel, mensagens com dúvidas e perguntas sobre as soluções por mim encontradas para tantos e tantos problemas que a tradução da Bíblia inevitavelmente suscita.

 

Como já tive ocasião de dizer várias vezes, num mundo ideal todos nós leríamos o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego – e assim resolvia-se da melhor forma a problemática levantada pela tradução da Bíblia. Não estamos, infelizmente, nesse mundo ideal. Assim, quem traduz a Bíblia tem de ter a consciência de estar a fazer algo em prol dos outros; no meu caso muito concreto, o que desejo proporcionar às pessoas que lêem a minha tradução do Novo Testamento é a experiência, tão aproximada quanto possível EM PORTUGUÊS, do deslumbramento de lermos o texto na sua língua original: grego.

 

Descontando pequenas perguntas e dúvidas que me chegam sobre aspectos muito específicos, eu diria que as duas perguntas a que respondi mais vezes são:

 

(1) Porque é que eu traduzi ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου (em latim «Filius Hominis» e tradicionalmente, em português, «o Filho do Homem») por «o Filho da Humanidade»?

 

(2) Porque é que uso, por vezes, o artigo indefinido para o Espírito Santo, isto é: «um espírito santo»?
Quanto à primeira questão, de resto explicada nas pp. 45-6 do 1º volume da minha tradução, importa referir que tem havido, no século XXI, uma progressiva aceitação de que nem sempre é exacto traduzir as palavras ἄνθρωπος em grego ou «homo» em latim por «homem» em línguas que não têm a distinção que o grego e o latim têm (e o alemão também tem – e o hebraico, já agora) entre «homem» por contraste com «mulher» (em grego ἀνήρ, em latim «vir», em alemão «Mann») e «homem» no sentido de «ser humano» (em grego ἄνθρωπος, em latim «homo», em alemão «Mensch»).

 

Assim, tem vindo a parecer mais rigoroso, a um crescente número de estudiosos, optar pela tradução «Son of Humanity» («Filho da Humanidade») para o termo usado no Novo Testamento (que é diferente, note-se, do que lemos em Daniel ou Ezequiel, por razões que não vou agora explicar, mas que estão explicadas no 3º volume da minha tradução, que sairá no final do ano). Mesmo noutros textos da literatura cristã, nomeadamente escritos em latim, tem-se notado a opção de traduzir «homo» por «humanity» em vez de «man»: veja-se a imagem reproduzida abaixo, do início das Confissões de Santo Agostinho, na nova tradução de Carolyn Hammond, publicada pela Harvard University Press (2016). Dir-se-á que esta tradução contraria a tradição teológica de traduzir «homo» por «man» («homem»): no entanto, a própria Carolyn Hammond, apesar de católica praticante, não teve problema em aceitar que é aconselhável manter questões de índole filológico-linguística separadas de questões de conveniência teológica. E assim não hesitou em traduzir «homo» por «humanity».

 

Quanto à questão que se coloca em relação a «um espírito santo» onde se esperaria ler «o Espírito Santo»: quando os tradutores da Bíblia de King James (1611), tida como teologicamente incontestável em ambiente protestante, traduziram Lucas 1:35, traduziram do seguinte modo: «THE Holy Ghost shall come upon thee, and THE power of THE Highest shall overshadow thee; therefore also that Holy thing which shall be born of thee shall be called THE Son of God».

 

Repare-se nos artigos definidos que coloquei em maiúsculas. Nenhum deles está presente no texto grego, que não nos fala aqui em «o Espírito Santo» nem em «o Filho de Deus», visto que os artigos definidos estão ausentes da frase. É claro que, noutras passagens dos Evangelhos, lemos em grego «o Espírito Santo» e «o Filho de Deus»; mas nesta passagem não temos, no texto grego, os artigos definidos.

 

Qual é o problema de uma tradução como a da Bíblia de King James? É que transmite a quem não tem possibilidade de consultar o texto grego uma ideia errada daquilo que está, de facto, no texto. É indiferente a presença ou não do artigo definido? Teologicamente podemos dar como adquirido que não há diferença entre «o Espírito Santo» e «um Espírito Santo»? Não me compete a mim, como tradutor, partir desse princípio; mas apenas dar a ler o que está no texto. Idealmente, devíamos traduzir para português a passagem acima citada do seguinte modo: «Espírito Santo virá sobre ti e poder de <ente> altíssimo te sombreará. Por isso, também o concebido <é> santo e chamar-se-á filho de Deus».

 

Convenhamos que «Espírito Santo virá sobre ti» não é muito natural em português, já que para nós é natural «o espírito» ou «um espírito». Por isso, neste contexto, já que não seria correcto escrever «o Espírito Santo» e fica estranho escrever «Espírito Santo» sem qualquer artigo, a opção preferível será «um espírito santo».
No entanto, é preciso dizer que este dilema do que funciona ou não com/sem artigo definido levanta-se constantemente na tradução para português da Bíblia, desde logo numa palavra que surge muitas vezes sem artigo em grego, mas que em português fica estranha sem artigo. Na resposta de Maria ao anjo, ela diz em grego «eis a escrava DE Senhor» – e não «eis a escrava DO Senhor». Em latim – língua que não tem artigo definido ou indefinido – estas frases ficam sempre bem: «ecce ancilla Domini». Ao traduzirmos a frase a partir do latim sem conhecimento da frase grega, podemos subentender ambos os artigos: «eis a escrava do Senhor»; ou podíamos optar por «eis uma escrava do Senhor».

 

Mas o texto grego é que tem de funcionar como diapasão. E o texto grego diz-nos claramente que não se trata aqui de «uma escrava»; mas sim de «a escrava» de <um> Senhor. Senhor esse que é, obviamente, Deus.

 

Em resumo: com a minha tradução do Novo Testamento pretendo também confrontar as pessoas com o facto de as fórmulas tradicionais que temos nas nossas cabeças, depois de as termos ouvido uma vida inteira traduzidas com base noutros critérios, não corresponderem muitas vezes àquilo que está, de facto, no texto na sua língua original. Todos conhecemos «bem-aventurados os pobres de espírito»; ou «fazei isto em memória de mim»; ou «o Espírito Santo virá sobre ti». Mas não é isso que está realmente no Novo Testamento. E todos rezamos na missa um Pai Nosso que não reproduz as palavras que Jesus indicou que rezássemos. Mesmo que vocês não achem isso estranho, eu acho...

 

É preciso voltar a estudar e compreender o texto do Novo Testamento na sua língua original: o grego. O cristianismo do século XXI deve estar apto a aceitar que o rigor linguístico não é inimigo da teologia – muito menos da fé. Nem a Bíblia se torna menos santa por lermos nela o que realmente lá está escrito.

 

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 Post original aqui

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