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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

Aqui está mais uma fotografia do ‘Pharomachrus mocinno’, o nosso Quetzal desta sexta-feira. Este tipo, o ‘Quetzal Resplandecente’, era considerado «divino» nas civilizações pré-colombianas. «Deus dos Céus» para os antigos astecas e maias – e símbolo da bondade e luz –, era declarado crime matar um Quetzal. Em várias lendas o seu nome também significa «precioso» ou «sagrado» nas línguas meso-americanas.

O ‘Pharomachrus mocinno mocinno’ encontra-se sobretudo no México, Guatemala, Honduras, no leste de El Salvador e no norte da Nicarágua. O Pharomachrus mocinno costaricensis habita a Costa Rica e as terras altas do Panamá.

Ver também este Quetzal costa-riquenho, esta recordação da Guatemala, e esta coleção de imagens do Bosque Nuboso, em Monteverde, na Costa Rica. Boas leituras!

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Como é habitual nas sextas-feiras, aqui está a crónica de J. Rentes de Carvalho. Na semana passada, como se recordam, era «A Barbie e o Namorado»; esta semana, «As Orelhas em Ponta». Maravilhosa.

«Os sorrisos são os mesmos, as pessoas continuam a falar-lhe como dantes, uma ou outra diz que o tempo passa depressa, já lá vão dez anos, pergunta se ainda aguenta o trabalho no lar. Depois é bom-dia ou boa-tarde, adeusinho, parece o costume mas há mudança, Matilde tem a certeza de que lhe escondem qualquer coisa. Não escondem. Ganharam-lhe medo, desde a tarde em que no café anunciou que o senhor Adriano não durava, e ele faleceu na noite seguinte. Depois foi a mãe do Fonseca, o tio da Sabina, a avó do Antero, a avó da Mariana. Quiseram saber se era dom, e ela tinha-se zangado. Qual dom, qual carapuça, qualquer um podia ver. Quando os idosos começavam a ficar com as orelhas em ponta, era sinal que nunca falhava: poderiam aguentar o dia, mas da noite não passavam. No café, quando ela não está, ainda gracejam, mas dentro de casa deixou de haver paz. Embora ninguém toque no assunto, involuntariamente vão os olhos dos novos para as orelhas dos anciãos. E estes, fingindo que não dão conta nem acreditam no que a Matilde diz, evitam o espelho.»

 

A crónica de J. Rentes de Carvalho é publicada aqui.

 

Manuel Alberto Valente vive em Lisboa e é editor – o seu nome está ligado a chancelas tão importantes como a Dom Quixote, a Asa (que com ele iniciou a publicação de literatura) e, actualmente, a Porto editora, onde dirige a Divisão Editorial e Literária de Lisboa. Estudou Direito em Coimbra e em Lisboa (além de ter passado por Luanda),mas o jornalismo, uma vez por outra a política, e sempre os livros foram o seu destino. Sobre a poesia, escreve ele próprio que «não passa de um ofício de preguiça e no meu caso / além de preguiçosa prefere o curto prazo/ fisga de bolso que fala do umbigo». Os versos agora reunidos são também marcados por esta conclusão, tirada de perto: «Com a idade aprendemos / que o amor existe / na confluência de dois verbos: o verbo recordar e o verbo ensandecer.»

 

 

 

Um exemplo de beleza.

Claudia Cardinale em A Rapariga da Mala, de Zurlini.

 

Um exemplo de elegância.

Audrey Hepburn, em Sabrina, de Billy Wilder.

 

Um exemplo de fealdade.

Donald Trump, em todas as fitas que faz.

 

A música que nunca lhe sai da cabeça.

“La Bohème”, Charles Aznavour:

“Je vous parle d’un temps

Que les moins de vingt ans

Ne peuvent pas connaître”

 

O lugar ideal para passar férias.

A minha casa na Ericeira.

 

Qual foi o primeiro livro que leu? O que se lembra dele?

A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf. Muito pouco, na verdade, mas tudo começou aí.

 

Que livro o obrigaram a ler na escola que achou insuportável?

Julgo que no meu tempo não havia livros obrigatórios. Mas, mais tarde, já no liceu, o Herculano foi uma “seca”.

 

Qual é obra que releu mais vezes? Porquê?

Devia responder o Ulisses, do Joyce? Nem sequer o li, quanto mais reler...

 

Vai parar a uma ilha deserta e encontra o pior livro imaginável. Como se chama?

Nas ilhas desertas só há livros maravilhosos.

 

Qual é o melhor local para ler? E o pior?

O “meu” sofá. A praia, onde nunca consigo uma posição confortável.

 

A bebida ideal para acompanhar uma boa leitura?

Whisky, sempre whisky.

 

Costuma sublinhar livros ou escrever neles ou é daqueles que os mantém imaculados?

Sublinhava as sebentas na Faculdade, os livros não.

 

Usa um marcador ou dobra as páginas?

Marcador, claro.

 

Em miúdo, sonhou em ser igual a que personagem literária? Porquê?

Perry Mason. Por isso fui para Direito.

 

De que livro tirava o seu epitáfio, porquê?

Detesto epitáfios.

 

Um filme que gostaria de rever sempre.

Johnny Guitar, claro.

 

 

Leia na edição de hoje do jornal i a entrevista de Manuel Jorge Marmelo ao jornalista Diogo Vaz Pinto: «Desta vez tudo se passa num prédio, uma viva assombração dos nossos dias funcionando ali um prostíbulo às ordens de um tirano preso a uma cadeira de rodas. Manuel Jorge Marmelo arquitetou novamente um microcosmos onde o leitor começa por ser lançado num espaço fechado um tanto genérico e servido de um bando de clichés os nativos das representações ordinárias que despontam à primeira sugestão. Mas aos poucos como se erguidos dos próprios fósseis os personagens vão descolando do registo linear e ganhando traços próprios. Como se a vida fosse despertada pela atenção do leitor atravessando as divisões estilhaçando a superfície À medida que as personagens inicialmente algo esquemáticas recordam episódios do seu passado vão assistindo assim ao seu próprio parto Uma narrativa que consegue colocar a engrenagem entre a realidade que nos chega todos os dias de forma difusa pelas notícias as distâncias que divisamos como vagas ficções menos pelo seu lado fabuloso do que pelo lado sórdido e os modelos de opressão que dominam o tempo que vivemos Um livro que fica a meio caminho entre a alegoria e uma distopia em ponto pequeno.»

 

 

 

Entrevista de Diogo Vaz Pinto | Fotografia de Diana Tinoco

© jornal i

 

 

 

O cenário deste romance é um bordel e já disse que este espelha um pouco a Europa mas gostava de saber qual foi o ponto de partida para este livro...

Curiosamente não teve a ver com esse bordel como metáfora para a Europa. Lembro-me perfeitamente de quando escrevi as primeiras frases do livro. Foi aqui em Lisboa Acordei de manhã na torre de um hotel quando estava hospedado para gravar o episódio do Contentor 13 [programa da RTP2, de entrevista a autores]. Acordei com o barulho da cidade ao longe e a sensação de despertar para a realidade mas não poder ver o que se está a ouvir É a partir daí que a história se desenvolve A ideia de transformar esse prédio alto num bordel surgiu posteriormente.

Parece haver nos nossos dias uma dificuldade da ficção de estar a par da realidade. Ao escrever este livro debateu-se com o esforço para de algum modo fazer caber nele a realidade atual?

Sim o livro parte dessa premissa a necessidade de refletir sobre a realidade europeia de hoje E o livro está contaminado por isso. A imagem do bordel tenta dar corpo de um modo literário à ideia que fazemos hoje da Europa. Temos uma Europa guardada, cercada por muros e redes. Mas por as coisas estão a acontecer a cada dia que passa, é difícil estabilizar para já um pensamento sobre esta realidade. A literatura, do meu ponto de vista, é um esforço adequado para lidar com isto. Não decorreu o tempo necessário para a História se debruçar sobre aquilo que estamos a viver, e mesmo para a sociologia talvez seja ainda cedo para compreender isto com alguma clareza. Mas o que a literatura permite é abordar esta realidade sem certezas. Pode transformá-la numa outra coisa, dar-lhe uma dimensão ficcional e a partir daí mais do que negociar certezas pode problematizar estas questões. Problematização que nem tem de ser feito de um modo directo. O que fiz foi reflectir isto a partir de um microcosmos como é o bordel do livro, ou como fiz no “Somos Todos Um Bocado Ciganos” [livro publicado pelo autor em 2012, na Quetzal], a partir do microcosmos do circo, que já entendeu me permitiu trabalhar questões que enquanto cidadão me inquietam. 

Paulo Piconegro, o dono do bordel, que nos surge paralisado, numa caldeira de rodas, admite algum paralelo imediato com Wolfgang Schäuble?

É engraçado porque na apresentação do livro na semana passada, no Porto, à medida que a apresentadora ia falando do livro foi tornando óbvio que este personagem é muito parecido com o ministro das Finanças alemão. Quando terminou de falar, eu pedi às pessoas para não confundirem os dois. Mas evidentemente a comparação é inevitável. Não foi esse o ponto de partida embora a dada altura me tenha ocorrido esse paralelo entre o dono do bordel e o dono da Europa. 

E vê um paralelismo na forma de aproveitamento das economias mais débeis, uma espécie de lenocínio a favor dos países mais ricos da Europa?

Essa noção foi-se desenvolvendo à medida que escrevia o livro. Mas o que eu acho mais preocupante é o não se poder dizer sequer que são as nações mais poderosas do centro da Europa que impõem ao resto uma série de regras, uma vez que estas nações com economias mais frágeis têm apesar de tudo líderes eleitos e que seriam relativamente fáceis de afastar através de eleições. O problema é o facto de hoje quem toma decisões na Europa serem pessoas sem rosto. Que não conhecemos, que não elegemos e que não podemos afastar. São precisamente os Paulos Piconegros deste mundo que estão encerrados em enormes edifícios a decidir aquilo que depois influencia a vida de todos nós. Desde directrizes económico-financeiras a que todos os países estão sujeitos até à quantidade que lhes parece razoável de imigrantes que podem entrar por dia na Europa. São pessoas inamovíveis e que têm um poder que ninguém fiscaliza.

Pareceu-me que existia também uma denúncia de algo pernicioso na forma como Piconegro se relaciona com a arte, nomeadamente com a pintura “Les demoiselles d’Avignon” que ele coloca à entrada do bordel como se procurasse filtrar a realidade que ele próprio concebe, criando um estranho jogo de espelhos. Que tipo de jogo de forças está ali na forma como ele se apropria do quadro do Picasso?

Estamos todos cansados de ver no Facebook aquelas frases que repetem que a arte salva as pessoas, que a literatura salva isto e aquilo. Mas o que a História nos tem dito é que muitos daqueles que cometeram os piores crimes contra a humanidade eram muitas vezes pessoas que exibiam uma certa cultura. A relação entre a cultura e a bondade está longe de ser imediatamente demonstrável. E isto também nos remete para essa tal elite de poderosos que comandam as nossas vidas e que, muitas vezes, são coleccionadores de arte e que ganhem fortunas com a especulação à volta desta. Tanto comercializam arte como petróleo ou o que for. Para eles o valor da arte não difere do de qualquer outro produto. Foi na tentativa de reflectir sobre esse valor da arte e sobre a falta de valores na relação com a arte que explorei o tema no livro. Para mim é bastante claro que a relação com a arte não implica a adopção de valores éticos e morais, e esta foi uma forma de denunciar este mundo em que tudo é convertível a um valor de mercado.

A ideia que dá o título ao livro, a do macaco infinito, com Wakaso, o negro que surge como escravo às ordens de Piconegro, procurou assim reflectir sobre formas actuais de exploração mascaradas através da relação económica?
O teorema do macaco infinito [segundo o qual um macaco digitando aleatoriamente num teclado por um intervalo de tempo infinito acabará por produzir alguma grande obra literária, eventualmente até a obra completa de Shakespeare] tem essencialmente três dimensões neste livro. A primeira é a do racismo e dos vários tipos de intolerância, que se calhar até explorei mais a fundo em livros anteriores. Depois existe uma dimensão metaliterária bastante óbvia, no sentido em que este teorema pode, em última análise, ser aplicado a todos os escritores. O que os escritores fazem, no fundo, é sentarem-se em frente a uma máquina ou a uma folha de papel e tentar escrever uma obra, de preferência forte. Portanto, o que tentam é a partir de uma disciplina auto-imposta tentar criar alguma coisa. Serviu-me assim como metáfora da literatura e reflectir sobre o que é escrever um livro. A terceira dimensão, e para mim a mais interessante, é a possibilidade de nós, homens, sermos provavelmente esse macaco infinito. O símio cujas capacidades mentais não pararam ainda de evoluir e que não sabemos se algum dia esta evolução irá parar. O problema é o de através desta capacidade aparentemente infinita sermos capazes por um lado de enviar uma sonda até Júpiter, curar doenças mortais, sermos capazes de criar obras de arte sublimes, e ao mesmo tempo sermos capazes enquanto comunidade de impor regras absolutamente absurdas do ponto de vista humanístico. Trinta anos depois da queda do muro de Berlim estamos novamente a construir muros na Europa e estamos todos os dias a provocar uma mortandade a pessoas que procuram chegar cá fugindo de guerras e sem que isto nos pese particularmente na consciência. No fundo, o termos criado as condições para que quase semanalmente ocorressem crimes bárbaros como foi o caso do atentado de ontem [a entrevista foi feita na passada sexta-feira] em Nice. Na minha opinião este tipo de atentados sucedem porque é relativamente fácil a um indivíduo cair numa situação de desequilíbrio mental que nos leva a ultrapassar essa fronteira entre o que temos como humano e essa outra condição. Passa a ser muito fácil matar centenas de pessoas porque ninguém olha para nem por ninguém na nossa sociedade. Acho que o problema do terrorismo é mais do que tudo um problema de psiquiatria. Desde o início dos tempos que há homens com instintos homicidas – que é o que mais se opõe ao sentido de sociabilidade que caracteriza o Homem enquanto espécie. Ninguém no seu perfeito juízo mata por sua vontade outra pessoa. É preciso pelo menos um instante de loucura para chegar a esse ponto. O que sucede com o terrorismo foi terem sido criadas condições para que pessoas desequilibradas psicologicamente se sintam enquadradas por ideais completamente enviesados que oferece a estas pessoas uma cobertura ideológica para todo o género de atrocidades.

Depois de mais de duas décadas a trabalhar como jornalista, e sobretudo num período em que o rosto que o país de si tinha era em grande parte reflexo do trabalho dos jornalistas, classe que tem vindo a perder meios e influência... Agora como romancista, em que medida pensa que a literatura pode ou não compensar a perda da capacidade mediadora dos jornais?
Nenhum jornalista, ou ex-jornalista, consegue livrar-se de um olhar crítico sobre a realidade. Mas isto é antes de tudo uma postura cidadã. Todos devemos adquirir essa capacidade de questionar o ambiente que nos rodeia, sejamos jornalistas ou tenhamos qualquer outra profissão. A minha literatura é tributária dessa tensão com a realidade. Creio que a literatura tem um papel de mediação mas que não se substitui ao do jornalismo. São processos de mediação completamente diferentes. O do jornalismo é muito mais directo, uma reflexão diária e continuada sobre factos e em cima dos factos. A literatura não o é necessariamente. Toda esta nossa conversa é um pouco uma simplificação do que é o livro. O livro não coloca as questões de um modo tão directo. Cria uma situação completamente ficcional e até, em alguns aspectos, inverosímil, e, a partir dessa falsificação da realidade, a literatura tenta problematizar para buscar assim uma verdade. Mas não é uma verdade semelhante para todos os leitores. O que a literatura tenta é levar as pessoas a pensar a partir de uma mentira. Uma ficção de algum modo inverosímil e que não se confunde com a realidade. Não fiz sequer trabalho de campo para perceber se existe um bordel como o Bar Mitzvá [o do livro]. Mas foi o bordel que eu inventei para cumprir a função que lhe determinei. A partir da ficção o trabalho do escritor não é entregar verdades formatadas ao leitor mas levar o leitor a reflectir sobre a realidade que está na origem daquela ficção. E o obrigar o leitor a pensar também o leva a retirar as suas próprias conclusões.

Neste livro opta por um tipo de escrita bastante acessível, bastante directo na forma como narra a sua história, apresenta o elenco dos personagens, parece às vezes o tipo de narrativa que facilmente teria uma adaptação cinematográfica pela forma tão visual como se desenrola a acção. Isto resulta de algum esforço para tentar cativar um público mais vasto?

Não foi essa a preocupação. Tratando uma realidade que é cruel e até agressiva, este livro precisava de uma linguagem que também fosse crua e seca. Essa aparente simplicidade da linguagem é contrabalançada pela agressividade de palavras que sei que podem provocar alguma aversão aos leitores. Não houve minimamente uma preocupação de escrever simples para ser mais fácil de entender, mas de escrever de um modo nu e cru para se adequar à realidade sobre a qual o livro procura reflectir. 

Qual o papel do romancista numa sociedade em que os meios tecnológicos parecem ter criado a possibilidade para que todos se reclamem autores?
Aquilo que eu entendo como sendo a minha obrigação enquanto escritor é contar uma história mas não fazer dessa história um exercício vazio e sem mais sentido que não seja o do entretenimento. O papel da literatura é ir além do entretenimento e induzir e praticar uma postura desde logo cívica, uma atitude de questionamento, mas também um gesto literário que construa uma visão sobre o mundo que temos à nossa volta.

No teorema do macaco infinito o exemplo dado é a obra de Shakespeare, mas quais foram para si os escritores que mais o impressionaram por essa capacidade de, contando uma história, problematizar o mundo à sua volta?

Houve dois livros que me marcaram profundamente na fase final da adolescência. O “Cem Anos de Solidão”, do García Márquez, e “A Jangada de Pedra”, do Saramago. Li-os muito próximo um do outro e não só me educaram enquanto leitor mas obrigaram-me a ser mais criterioso nas escolhas que fazia em termos de leituras. Indicaram-me o caminho para o que eu haveria de ser como autor. Para simplificar, “A Jangada de Pedra”, a ideia da Península Ibérica libertar-se da Europa e ficar à deriva não é à partida uma história verosímil, não é uma coisa que possa acontecer amanhã nem em 100 anos, mas o que o Saramago com esse livro me ensinou é a possibilidade de a partir de uma ideia inverosímil ser possível criar uma história que, internamente, ao mergulharmos nela e nos vermos imersos naquela linguagem, rodeados daquelas personagens e seguindo aquelas reflexões, aquilo torna-se uma verdade para quem está a ler. É o que eu tenho tentado fazer.

 

Fotografia de Diana Tinoco [© jornal i]

 

 

Imperdível entervista de Manuel Jorge Marmelo ao jornalista Valdemar Cruz, do semanário «Expresso»: Temos um prostíbulo comandado por um patrão paralítico sentado numa cadeira de rodas e amante das criações artísticas, um servil criado negro obrigado a demonstrar o teorema do macaco infinito, as prostitutas do bar Mitzvá onde tudo acontece, e uma metáfora da Europa e dos tempos que vivemos. É o novo livro de Manuel Jorge Marmelo, intitulado “Macaco Infinito”.»  [Fotografia de Lucília Monteiro / Expresso]

Aos 45 anos, Manuel Jorge Marmelo, jornalista entre 1989 e 2012, surge com novo romance. São já mais de vinte títulos publicados desde 1996, ano em que se estreou com O Homem que Julgou Morrer de Amor. Autor de O Amor é para os Parvos, conquistou em 2005 o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco com O Silêncio de um Homem Só. Em 2014 o romance Uma Mentira Mil Vezes Repetida proporcionou-lhe o prémio literário do Festival Correntes d'Escritas. Toda a entrevista aqui.

 

Valdemar Cruz 

Ao ver o romance situado num bordel cujo patrão é um paralítico sentado numa cadeira de rodas, é forte a tentação de ver ali uma metáfora da Europa em que hoje vivemos. É uma leitura abusiva?

É isso que o livro é. O patrão do prostíbulo não é exatamente o ministro das finanças alemão, mas poderia ser. A ideia das janelas do prostíbulo estarem todas fechadas, e ainda por cima terem em frente um aeroporto cheio de cercas é para reforçar a metáfora. Vivemos na Europa tempos bastante complicados. De alguma forma, isto é uma maneira de escarafunchar na ferida até ela fazer sangue.

Não obstante o ambiente que se imagina feérico, próprio de um bordel, aquilo acaba por ser muito claustrofóbico…
Quis que toda a ação decorresse ali dentro e essencialmente em dois ou três espaços do bordel para dar a ideia desta claustrofobia provocada pela alta finança e por esta série de regras mais ou menos cegas a que os países estão sujeitos, com efeitos como o referendo inglês. Por outro lado há a situação social. Finalmente, temos as sucessivas vagas migratórias e o modo como a Europa, ou alguns países, têm lidado com a situação, criando entraves de tal modo grandes, que as pessoas acabam por arriscar e fazer viagens perigosíssimas pelo mar, com os resultados trágicos que se conhecem.

Paulo Piconegro é o patrão do bordel Mitzvá. Chamou-me a atenção a escolha dos nomes, todos eles estranhos, porventura com segundas leituras. O que presidiu à escolha?
Sim, houve essa intenção. Para além de linguagem, que tentei que fosse o mais seca e despida possível para se adequar bem ao tempo que vivemos, houve a preocupação de adequar os nomes das personagens à sua personalidade. O Wakaso (o servil criado negro de Piconegro) que é um nome relativamente comum numa parte de África, foi roubado a um jogador de futebol da Costa do Marfim. Um dia estava a ver um jogo da Taça das Nações Africanas e apareceu-me ali o Wakaso. Achei que tinha tudo a ver com alguém que vai ter o papel principal no livro e está a tentar, cumprindo um castigo, comprovar a teoria darwiniana do macaco infinito. Ou seja, a tentar por acaso ser capaz de escrever um livro. O próprio nome acaba a ser um dos fatores que levam Piconegro a contratá-lo por achar que há ali qualquer coisa de poético no facto de alguém se chamar o acaso.

E o nome do bar? Mitzvá remete diretamente para a tradição judaica…
De alguma forma o nome está explicado no próprio texto. Aquilo é um prostíbulo. O Mitzvá é uma cerimónia de passagem dos judeus para a idade adulta e que no fundo é isso que no mundo secular fazem os prostíbulos. Para muitas pessoas os bares de alterne são locais de iniciação na vida sexual. Não há qualquer outra intenção.

Com que intenção utilizaste uma linguagem seca, como dizes?
O livro retrata uma situação muito crua. Para além do Mitzvá ser um lugar inóspito, a realidade da qual pretende ser metáfora também é bastante inóspita. Tentei que a linguagem retratasse tudo isso. Quando chamo putas, e não prostitutas ou meretrizes às funcionárias do bar, é uma tentativa de tornar aquela realidade difícil, também pelo lado da linguagem. Sei que causa reação por parte das pessoas. Já com outro livro tive essa experiência de que o palavrão às vezes provoca reações epidérmicas nas pessoas.

A palavra “puta” deve ser das mais usadas no livro. Isso ainda é incómodo, mesmo tratando-se de um romance?
Ainda é incómodo. Julgo não cometer nenhuma inconfidência grave se disser que já o livro estava numa fase bastante adiantada de produção e ainda tinha a minha editora da Quetzal a perguntar-me se por acaso não queria mudar “putas” para “prostitutas” e “preto” para “negro”. Tenho amigos pretos que preferem ser chamados pretos a negros, ou escurinhos ou outra coisa qualquer. As vezes há um certo politicamente correto que leva as pessoas a olharem para as palavras com um preconceito que elas não têm. Tentei ser o mais direto possível nesse tipo de designações.

Como chegaste a esta ideia?
As ideias vão surgindo aos bocadinhos. O primeiro capítulo do livro, que é o Paulo Piconegro a acordar e a ouvir o ruído do trânsito, surgiu-me quando acordei uma manhã em Lisboa num hotel altíssimo a ouvir o ruído do trânsito. Aquela imagem de alguém que ouve a cidade à volta após acordar foi a primeira ideia que tive para o livro. Depois surgiu a ideia de quem acorda ser alguém que não se pode mexer e está resumido a essa perceção auditiva da cidade. Mais tarde acabou por surgir o criado negro.

Como é que te aparece aquele trabalho à volta do teorema do macaco infinito, que é algo muito forte no contexto do livro?
Creio que resolvi incluí-la muito no início. Tem um papel central e sobretudo remete para uma ideia que julgo resultar com alguma força, que é a questão de sendo o ser humano o mais infinito dos símios – até hoje ainda não paramos de evoluir e descobrir coisas – tanto é capaz de fazer aterrar uma sonda em Júpiter, curar uma doença praticamente incurável, ou compor o “Samba da Bênção”, como, ao mesmo o tempo, enquanto coletivo, pode criar as tais regras que estão na origem da situação que vivemos hoje na Europa. Por outro lado, toda aquela teoria darwiniana permite fazer uma ligação à literatura e refletir sobre o processo literário. Os escritores acabam por fazer a mesma coisa. Sentam-se frente ao computador e esperam que dali resulte um livro, de preferência bom.

Como é que uma casa de putas, para utilizar a linguagem do livro, está recheada de reproduções de grandes quadros de grandes pintores, com particular destaque para o tantas vezes referido “Les Demoiselles d’Avignon”, de Picasso?
O Paulo Piconegro tem essas preocupações estéticas e artísticas, essencialmente porque me pareceu interessante fazer uma reflexão sobre os chavões que costumamos ouvir sobre a literatura poder salvar as pessoas, tal como a arte. As putas não ligam nenhuma àquilo e Piconegro, tal como várias facínoras que fomos conhecendo ao longo da história, consegue ser uma pessoa absolutamente horrível e cruel, e ter essas preocupações artísticas. Temos inúmeros exemplos de pessoas combinaram o absoluto terror e o culto pelas artes.

 

 

 

 Basicamente foi isso mesmo que se passou na Tertúlia Os Meninos da Avó, em Sintra: um encontro informal, como é hábito na tertúlia, que serviu para a apresentação de um dos mais belos romances do ano, a estreia de Nuno Costa Santos na grande ficção [imagens e resumo do encontro podem encontrar-se aqui]. A Rui Lopo coube fazer a apresentação do livro, através de um texto que publicamos mais abaixo.

 

 

Notas a Céu Nublado com Boas Abertas, de Nuno Costa Santos

Por Rui Lopo

 

Não penso o que vai ser o pós-morte. Em vez disso, quero ficar. Quero saber o que é que ainda pode ser a vida, uma existência com engulhos mas ainda assim habitável e – por mais que a literatura a pinte com justiça num negro monocromático – é atravessada aqui e ali por pequenos milagres, alentos solares. (p.177)

Esta é uma estória sobre um avô e um neto. E a sua profundíssima ligação. O avô, João Pereira da Costa, está nos anos 40, ainda sem filhos, no Caramulo, exilado na montanha, segundo a sua expressão, tentando tratar-se de uma gravíssima tuberculose. Descreve o seu sofrimento físico e a angústia que o acompanha, a angústia de estar só, da improbabilidade da cura e da dúvida crescente sobre o seu lugar na sociedade e no mundo, sobre a impossibilidade da crença na religião tradicional, assim como sobre a inevitabilidade de enfrentar o que ela representa e o que a ela subjaz de mistério e de sentido. O avô escreve um relato que é uma carta ao futuro, pede a um descendente, que se interesse pela escrita, que se desloque aos Açores, a S. Miguel, a Ilha, para trazer de volta estórias do seu tempo. Por ventura, para as contrastar com aquelas que ele descreve nesse longo diário biográfico. Assim feito, o neto, patentemente interessado pela escrita, vai para a ilha procurar os lugares da pertença familiar e aí lendo devagar o texto do avô.

O livro, então, formalmente, é feito do intercalar constante do relato do avô, umas vezes em directo, na primeira pessoa, outras, em diferido, mediado pela leitura que dele o neto vai efectuando, e do relato das peripécias da sua – que é a nossa – actualidade.

O narrador actual não deverá ser confundido com o autor. Apesar de imensas semelhanças, a coincidência não poderá ser nunca absoluta. O narrador actual nunca é nomeado, mantendo-se a dúvida sobre a sua identidade, para além da sua condição de neto de João Pereira da Costa. Essa talvez seja uma das astúcias maiores deste livro. Criar a verosimilhança dos acontecimentos através da sugestão no leitor de que narrador e autor são uma e mesma pessoa, assim como ir utilizando várias marcas de realidade no meio da ficção.

O paralelo entre o avô e o neto tem mais que muitas virtualidades. A solidão, a estranheza, a sensação de que há algo impossível por viver, uma certa inadaptação ou desadequação existencial que o micaelense actual experimenta são paralelas àquela que o seu avô vivenciou a partir da sua doença e do moroso e sacrifical processo de cura numa montanha nada mágica, mas igualmente sanatorial, como a de Mann. A doença, na sua concretude aflita, é símbolo máximo deste feixe de percepções. O leitor vai sendo ainda perpassado por um enorme conjunto de subtis e instigantes estranhezas: Há nomes semelhantes ou parecidos (o apelido Costa que se repete); o narrador é apresentado como micaelense mas parece não conhecer ninguém, só vagamente; o avô padece de tuberculose e o neto padece de asma, doenças respiratórias as duas e que remetem para a asfixia, frustração de querer respirar e não o conseguir, sinédoque ou metonímia da vontade de viver frustrada por mil e uma causas, condições e agentes: pela natureza imprevisível, feita de terramotos, vulcões e tempestades naufragantes, por doenças injustas; por um porteiro que não nos deixa entrar na discoteca onde seríamos felizes. E esta talvez seja uma das alegorias mais bem conseguidas de tantas que marcam o volume. Deus, o porteiro cósmico, não nos permitiu entrar onde achamos que pertenceríamos, onde julgamos que deveríamos estar, onde nos acolheríamos em prazer ou felicidade. Daí o ressentimento. O veneno da alma que nasce destas perguntas: Porquê? Porque terá sido assim? Porque me terá acontecido a mim? Qual a solução? Uma hipótese de resposta será a vingança. Mas esta, movida pelo ressentimento, é cega e o nosso narrador é confundido com o tal porteiro, o que o leva a ser vítima de uma tentativa de assassinato. Mas não era ele o porteiro, apesar de ser o autor de todo este cosmos, ou o nosso porteiro à entrada deste mundo. Daí que o louco agressor esteja paradoxalmente correcto. Qualquer autor sujeita-se a ser assassinado pela sua criatura, não é? Daí que o autor ou porteiro deste mundo seja constantemente procurado e imprecado, às vezes louvado por um personagem que percorre as madrugadas de terço na mão, outras repreendido pelo seu sadismo ou indiferença pelas suas criaturas, outras pura e simplesmente acusado de inexistência. Mas a asma, sinédoque de todas as frustrações, impele a acção romanesca. A asma traz-me uma segunda asma: a ansiedade. A asma do espírito (p.118) Neste romance o avô é assim um duplo do neto, um fantasma identitário e um convite a um mergulho no inconsciente, enfrentando o que lá está, que é sempre o absurdo da perda: a libertação da dor física não nos livra da vivência da outra dor. A mestria do autor também se nota no modo como sabiamente evita os anacronismos e como não amalgama o avô e o neto, colocando em paralelo as suas angústias mas logrando traduzi-las em dramas geracionais culturalmente diversos (ainda que partindo da mesma e comum humanidade essencial: a resposta filosófica do avô à sua doença, nos anos 40, é colocada entre a fé tradicional e a racionalidade política e científica; em 2014, a percepção de Deus oscila mais descontraidamente entre a visão de um agente mau, cínico, zombeteiro, absurdo ou – afinal – inexistente, mas as respostas racionalistas também parecem ser aqui vistas a partir de um prudente distanciamento).

Para além da doença, esconde-se a mágoa, a aflição, o ressentimento, a depressão. Constatar a dor, procurar a sua origem, constatar o horizonte da sua cessação, pormo-nos a caminho, literariamente, com equanimidade, mas sem perder a empatia, tanto maior quanto se constata como todas as cenas dependem umas das outras, num feixe de ligações infindo e indeslindável (como a stripper ser irmã do juiz). Endurecer sem perder a ternura, como dizia Ernesto Floresta.

A par desta descrição carinhosa do terrunho dos antigos, há também a atenção à actualidade, expressa sem ostensão nem fugas: a droga, a prostituição, vistas sem juízos de valor, mas remetendo para a paradoxal falta de horizontes no local onde o horizonte mais surge aos homens sob o signo do infinito. O mar.

As peripécias que vão compondo a viagem à Ilha (algumas delas, - provavelmente as menos inventadas – mui dignas seriam de figurar num caderno vermelho à Auster) e as personagens com que o narrador se vai cruzando, mesmo quando marcadas pelo absurdo ou pelo patético, não são julgadas mas mostradas na sua fragilidade. De realçar ainda o revelador cuidado em descrever a terra na sua humanização. O romance é abundante de topónimos que remetem não só para uma topografia íntima (para usar a bela e funda expressão de Domingos Lobo), uma microgeografia subjectiva – o lugar do primeiro beijo, a ravina onde se perdeu em criança, o mar onde se ia afogando – mas também para a asserção da nobilitante dignidade do singularmente remoto, do ínfimo, e do ermo. A par desta descrição carinhosa do terrunho dos antigos, há também a atenção à actualidade, expressa sem ostensão nem fugas: a droga, a prostituição, vistas sem juízos de valor, mas remetendo para a paradoxal falta de horizontes no local onde o horizonte mais surge aos homens sob o signo do infinito. O mar.

O livro que se tenta fazer é que é o livro que realmente se faz. São as peripécias de hoje que dão sentido às dores do avô. Foram as dores do avô que abriram a esperança na existência deste futuro. A prisão absurda pela qual o narrador passa é tão absurda e tão prisão como a doença do avô. Como a agressão perpetrada pela vítima do porteiro, que se chama Marinho, adjectivo que se aplicaria todos os ilhéus. Como a alergia quase fatal provocada pela combinação mágica de um fino e de um camarão, petisco que o menu deliciosamente apresenta sob o nome de absurdo. Como a recordação do quase afogamento ou da quase queda da infância. Desta sucessão de quases surge o sentido global. Céu nublado com boas abertas.

Além do cultivo da toponímia, com o sentido que apontámos, refira-se ainda a citação de expressões regionais, e a especulação sobre os seus sentidos mais profundos; o respeito quase terno pela religiosidade popular, que o avô teve de rejeitar com dramatismo, vista como paisagem anímica e como linguagem própria de uma história complexa cheia de dores e de metáforas salvíficas, ou a evocação de autores açorianos menos conhecidos, de novo, com candura e gratidão, assinalando uma pertença, uma busca identitária e um resgate ao olvido, como se está fazendo com o relato do avô, símbolo de todas as pertenças. Mas a tradição, como registo da passagem dos homens pelo mundo, é multímoda e contraditória, açoitada por ventos e terremotos. Daí que a dado momento o narrador declare coleccionar fotos tremidas. Essa é a modalidade mais certeira de guardar o mundo (p.168)É a tradição catálogo ou álbum destas tremuras.

O aforismo é um dos dons do autor e inscreve-o também numa nobre, riquíssima e desatendida tradição portuguesa, devedora talvez da nossa matriz mediterrânica, tanto na sua componente semita, judaica e arábico-muçulmana, em seu adagiário proverbial, como na componente clássica, greco-latina, em seu fulgor epigramático.

A personagem que faz de actor que representa que é um poeta numa terra de poetas também nos surge sob o signo da alegoria. Símbolo dos Açores, figurado como símbolo do açoriano que representa um papel para o turista, mas porventura com o sentido mais vasto do português actual que parece apenas viver encenadamente para beneficiar da visita do estrangeiro, mas é também símbolo da universal pantomima em que nos enredamos nos papéis sociais que vamos assumindo. Valorize-se ainda o talento já evidenciado noutras obras e aqui utilizado com segura medida para o cultivo do parágrafo lapidar, da observação sagaz, do aforismo como caminho e como meta da narrativa, porventura na linha de uma questa sapiencial do autor que se insinua e se entrevê, e por pudor se não manifesta mais berrantemente. O aforismo é um dos dons do autor e inscreve-o também numa nobre, riquíssima e desatendida tradição portuguesa, devedora talvez da nossa matriz mediterrânica, tanto na sua componente semita, judaica e arábico-muçulmana, em seu adagiário proverbial, como na componente clássica, greco-latina, em seu fulgor epigramático. Além do aforismo (que pode isolar-se – ou insular-se – da narrativa) registe-se o uso do sketch. Sim, do sketch. O aforismo e o sketch são géneros literários ilhéus. Ou são ilhas no meio de uma narrativa que é um continente. Certos delírios do narrador, além do valor alegórico e consolador que detêm, visando a descompressão do cenário de doença, servem como entremeses, como episódios dentro da narrativa maior, ampliando a sua dimensão simbólica e podendo perfeitamente ser utilizados separadamente, como aliás o autor já fez, na sua encarnação televisiva como Melancómico, com o episódio da maçonaria dos insones, aqui descrita como Ordem dos insones. Uma forma de dar dignidade aristocrática a quem não consegue fechar a pestana. Pessoas que se reuniam de noite para fazerem companhia umas às outras (p.194). Outra imagem do sentido possível da vida humana: pessoas que na noite, isto é, nas trevas da dor, da doença, do sofrimento moral, fazem companhia umas às outras.

A revolta daquele que não entrou na discoteca acaba por levá-lo a cometer o assassinato do porteiro e assim acaba preso. Agora a mágoa virar-se-á contra quem não lhe abriu a porta de saída (p-173). Esta personagem serve como linha de fuga, prevenindo-nos contra esta mágoa ressentida, aflição atroz ou revolta metafísica, noutras palavras: contra a solução anteriana para a cura do absurdo. Mas o absurdo afinal era apenas uma alergia. Ou um petisco.

 

 

AS PERGUNTAS E AS RESPOSTAS:

 

 

 

Um exemplo de beleza.

Um filme de Fellini, um livro de Halldór Laxness.  

 

Um exemplo de elegância.

Um filme de Kubrick, um livro de Camus.

 

Um exemplo de fealdade.

O cabelo de Boris Johnson.

 

A música que nunca lhe sai da cabeça.

Algumas sinfonias do Beethoven, algumas faixas dos Arcade Fire.

 

O lugar ideal para passar férias.

O norte atlântico de Portugal, cada vez mais. 

 

Qual foi o primeiro livro que leu? O que se lembra dele?

Deve ter sido uma enciclopédia que a minha mãe comprou ao senhor do Círculo de Leitores que aparecia lá no bairro. Mais tarde, Jorge Luís Borges ensinou-me que ler uma enciclopédia do princípio ao fim não é assim tão idiota como parece. Também pode ter sido um livro de BD com muito gore e sexo que o meu primo Jorge tinha escondido na parte de cima do armário da sala.  

 

Que livro o obrigaram a ler na escola que achou insuportável?

Uns Saramagos, uns Vergílios Ferreira.

 

Qual é obra que releu mais vezes? Porquê?

Moby Dick, talvez. É um dos maiores romances. Entre outras coisas, mostra que a viagem é o grande veículo narrativo. A pós-modernidade viciou-se na originalidade, na busca incessante do novo veículo narrativo, na descoberta de novas fórmulas, etc. Para quê? Mais de dois mil anos de literatura dizem-nos que nada supera a viagem como molde para um livro.  

 

Vai parar a uma ilha deserta e encontra o pior livro imaginável. Como se chama?

Qualquer um do Lobo Antunes.  

 

Qual é o melhor local para ler? E o pior?

O melhor? A minha sala. O pior? As urgências pediátricas.

 

A bebida ideal para acompanhar uma boa leitura?

Porto ou moscatel quando faz frio. Vinho branco gelado no verão.

 

Costuma sublinhar livros ou escrever neles ou é daqueles que os mantém imaculados?

Sublinho e escrevo ao lado.  

 

Usa um marcador ou dobra as páginas? 

O marcador é o lápis que uso para sublinhar.

 

Em miúdo, sonhou em ser igual a que personagem literária? Porquê?

Não tinha semelhantes sonhos.  

 

De que livro tirava o seu epitáfio, porquê? 

Assim de repente, está no meu Alentejo Prometido: a liberdade tem sempre um preço. Mas também podia ser uma parte de The Second Coming do Yeats: «Things fall apart, the centre cannot hold; Mere anarchy is loosed upon the world.»

 

Um filme que gostaria de rever sempre.

Heat de Michael Mann.

Às sextas-feiras, é dia da crónica de José Rentes de Carvalho. Na semana passada, o tema foi «O Martírio do Beijo»: «Tudo tem a sua hora e modo, princípio que deveria também valer para o ritual do beijo, seja de amor, ternura, cortesia, ou aquele a que Judas deixou ligado o seu nome. O caso é que, numa sociedade de esbanjamento, o desperdício se aplica a quase tudo. Começa pelos objectos, passa para os sentimentos, as maneiras, sabe Deus que mais. Assim, por exemplo, aquele saltar que em tempos era apenas típico dos Zulus, vê-se hoje em tudo quanto é festival, mas sem a elegância que essa tribo mostrava. O beijo, por sua vez, que tirante nas febres da alcova era um roçar de lábios pelas faces, as mãos das senhoras, os anéis dos bispos e os pés das imagens de Cristo, tornou-se um gesto banal, inflacionado, e por vezes, como no caso dos pais que beijam os filhos nos lábios, ganhando suspeitas de incesto.» [Ler o resto aqui.]
Esta semana, «A Barbie e o namorado».

Screen Shot 2016-07-01 at 17.46.42.pngEsta fotografia de um Quetzal foi obtida por Álvaro Cubero © na Costa Rica – trata-se do nosso quetzal desta sexta-feira. E recordamos um soneto do poeta guatemalteco Efraim López Rodríguez: «En lo más profundo del vírgen boscaje/ tu verde plumaje con la luz destella/ cruzando el espacio cual velóz centella/ luces en tu pecho purpúreo celaje.// Ave sacrosanta por el cielo ungida/ símbolo perfecto de la libertad/ la altivéz tú tienes de una majestad/ y una blanca pluma en tu ala escondida.// Desigual batalla en campos de Urbina/ dió triste victoria a la lanza asesina/ pero los laureles en la historia están. // Y tú que volabas allá en las alturas/ entre inmensas nubes de intactas alburas,/ el alma tomaste de Tecún Umán.»

 

Para acompanhar, imagens do costa-riquenho Álvaro Cubero – as paisagens onde voa o quetzal. Bom fim de semana e boas leituras.

 

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