«O maior dos poetas latino-americanos, o brasileiro Guimarães Rosa, escreveu: «As estórias não se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar é resistir.» E tal afirmação assenta como uma luva à nova geração de escritores uruguaios, entre cujos nomes se destacam Carlos Liscano, Leonardo Rossiello e Mario Delgado Aparaín.
Se houve um país da América Latina em que as botas militares se encarniçaram contra a literatura e os escritores durante o obscuro decénio das ditaduras, foi o Uruguai. Praticamente todos os escritores uruguaios passaram pela prisão, pelas torturas e pelo exílio. Foram muito poucos, escassíssimos, os que conseguiram sobreviver no Uruguai à barbárie fardada, mas sem a menor hipótese de publicarem uma só sílaba: para a ditadura, escrever era sinónimo de subversão.
Mario Benedetti, Cristina Peri Rossi, Eduardo Galeano, Marta Traba, Ángel Rama, Leonardo Rossiello, tiveram de partir para o exílio. Outros, como Mauricio Rosencoff e Carlos Liscano, permaneceram durante treze anos em prisões da ditadura. Mario Delgado Aparaín deambulou pelo país à procura de trabalho como jornalista e acumulando
as matérias-primas da sua narrativa. Entre todos, mantiveram viva a literatura uruguaia, e não só: fizeram dela uma das literaturas mais sugestivas da América Latina.
Em outubro de 1993 eu ainda só tinha lido um livro de Mario Delgado Aparaín, o romance El día del cometa, e o seu nome era ainda matéria pendente para mim. No entanto, por mais obras do autor que procurasse, não conseguia encontrar nenhuma. Até que um dia, estava eu de viagem num comboio de Frankfurt para Hamburgo, se sentou à minha frente um casal de desconhecidos. Mal se instalaram, pegaram num livro que começaram a ler a quatro
olhos. Liam-no com aquele tipo de avidez e prazer que provoca inveja, que supera qualquer pudor e nos impele a esticar o pescoço para ver se conseguimos descortinar o título do livro, pelo menos. Isto no caso de os leitores que tivermos diante de nós não serem como os que eu tinha: tão cuidadosos que forram os livros. Via-os fruir da leitura enquanto me esforçava por me concentrar numa pavorosa biografia de Heidegger que alguém me ofereceu não sei se
para alimentar a minha exangue cultura geral, se por vingança.
Liam, ficavam sérios, riam. De repente, alguém anunciou o bar ambulante e ouvi-os falar um com o outro no doce espanhol dos uruguaios acerca do que deveriam pedir.
A mulher queria café e o homem assentiu.
— Os senhores são uruguaios? — perguntei.
Apresentámo-nos. O casal de uruguaios atravessava a Alemanha rumo a Estocolmo. Após trocarmos algumas frases, descobrimos que tínhamos amigos comuns na Suécia,
e então esquecemos o café e pedimos uma garrafa de vinho.
— Nunca pensei que fosses latino-americano. Tens uma cara tão séria — disse a mulher.
— Pois é. Estavas a olhar para nós com cara de gastroenterite. Como um alemão — precisou o homem.
Então, expliquei-lhes que o que eu tinha era uma curiosidade imensa em relação ao que estavam a ler com tanto interesse. Foi assim que me veio parar às mãos, pela primeira vez, A Balada de Johnny Sosa.»
Do prefácio de Luis Sepúlveda
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