«No fundo, os autores não passam de personagens fictícias, com alguns elementos biográficos, sim, mas que nunca são suficientes para fazer deles verdadeiros seres reais. Enquanto isso, a biografia de uma personagem literária, mesmo se incompleta - e confessando-se incompleta - revela-se absolutamente fiável: ela é apenas o que o seu criador decidiu que ela fosse. O mesmo acontece com os seus actos e as suas palavras. Aliás, referimo-nos facilmente às suas biografias depois de as termos lido (ou nem isso) e citamo-las como autênticas . Já no caso das personagens históricas, e entre elas os escritores, as frases de efeito e as anedotas acabam por ser, quando as analisamos mais de perto, ou apócrifas ou nascidas da lenda.
Quanto ao que acontece às personagens fictícias e às personagens reais, elas são farinha do mesmo saco. As duas categorias amam, enganam, asassinam, culpam, roubam, fogem, traem, deliram, sacrificam-se, são cobardes, afundam-se na loucura, vingam-se ou acabam por suicidar-se, mas, mais uma vez, mesmo neste actos específicos, as personagens inventadas são mais reais. Temos a certeza de que Carlos e Maria Eduarda, os amantes de Os Maias, de Eça de Queirós, viveram - sem que pelo menos um deles ignorasse completamente o que fazia - um amor incestuoso; mas não sabemos seguramente o que se passou entre Byron e Augusta (...).»
Excerto de Bibliotecas Cheias de Fantasmas, de Jacques Bonnet, traduzido por José Mário Silva.