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Quetzal

Na companhia dos livros. O blog da Quetzal Editores.

«O bem que cada um obtém para si é suficiente para se satisfazer, mas o bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino.»

 

Ética a Nicómaco, na tradução de António de Castro Caeiro é apresentado dentro de duas horas, às 18h30, pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa e pelo Padre Tolentino de Mendonça, na Bertrand do Chiado.

 

 

 


O que temos aqui são histórias de gente em diferentes geografias, numa escrita sedutora que aguenta sem esforço as cerca de 500 páginas do volume. O ritmo é o certo, veloz. Outras vezes abranda, porque os comboios não andam sempre à mesma velocidade e os deslizes acontecem.

 

No Outlook, do Semanário Económico de Sábado, Isabel Lucas dedica uma página inteira a O Velho Expresso da Patagónia, ilustrado com uma imagem do autor a manobrar uma canoa.

Um excerto do excerto de Deserto Sem Saída, de Mohamed Dib publicado no blogue Pirra.


«E agora que a todas deu nome – tanto quanto podemos pensar – ele descansa. Enquanto isso, trinca um fruto a ele oferecido pela mulher, também ela nua, tal como a extraiu de si próprio, nua e passeando por esse jardim. Em troca desta dádiva, desta cortesia, ele recita-lhe os nomes que acabou de atribuir às coisas, que, até aí, não tinham nome nenhum. Ela senta-se e, enquanto escuta, com um seio esmagado contra o flanco do homem, a longa enumeração, a bela adormece. Ele repara nisso, parece compreender que é a resposta mais justa à sua fastidiosa litania. Mudo, contempla-a no seu sono. Certamente lembra-se, nesse momento, de que ela é a única que ainda não recebeu nome. E nós ouvimo-lo dar-lhe um.
            - Hawa – diz ele.
            Olha para ela; repete:
            - Hawa.
            - Sim – diz ela, no meio do seu sono.
            Este “sim” atravessa a grade e ouvimo-lo chegar até nós a aflorar-nos com a frescura de uma brisa.
            Mas, mal ela proferiu esta aprovação – e aí reside o artifício que ele usou – o efebo sem idade volta a pegar nela e refunde-a nele, tornando-se o hermafrodita do fim, como já fora o do início. Assim o hermafrodita coroado, o real enigma, é ele, tal como se apresenta diante de nós.»

 

Sinto por ele, Eça, depois de ler a biografia da Doutora Filomena Mónica, a nostalgia que se sente diante das grandes figuras de tragédia – mas uma tragédia silenciosa, surda, mais distante do que Havana, mais distante do que Newcastle, ou Bristol, ou Paris, alimentada por um desejo profundo de beleza. Uma beleza que não encontrou na Pátria e que colocou nas melhores páginas dos seus romances. Pessoalmente, lamento apenas que Eça não tenha valorizado a Sra. condessa de Gouvarinho, com o seu perfume de verbena e os seus cabelos ruivos, o seu desejo de infidelidade e de romance. Sei que não esperavam este reparo, vindo de um Matusalém minhoto, o mais reaccionário membro de uma família de Moledo e Ponte de Lima, mas peço que compreendam: naquele mundo corrompido pela política e pelo dinheiro, pela ignorância e pela preguiça, retratado com o génio e o talento dos grandes retratistas, faz falta alguém que genuinamente deseje o pecado e não o disfarce com literatura ou virtudes cívicas.

É isso que, no fundo, me aproxima de Eça de Queirós: o seu cepticismo. Os Homem, derrotados na primeira metade do século XIX e educados pelas catástrofes políticas, julgaram que a eternidade não existia. Esqueceram-se de Eça de Queirós.

 

(Fim.)
 

Texto de Dr. António Sousa Homem, escrito para a apresentação da biografia de Eça de Queirós, de Maria Filomena Mónica.

Se em Eça de Queirós há um personagem querido dos Homem esse é o vetustíssimo Jacinto Galeão, que o senhor D. Miguel apanhou do chão numa tarde soalheira de Benfica. O episódio vem na Cidade e as Serras, e é conhecido de todos. Jacinto Galeão abandona o país mal o príncipe embarca em Sines na direcção do exílio definitivo – e os Homem, para manter um módico de decência e não se fingirem de esquecidos, nunca deixaram de mencionar a palavra «Concessão» antes do toponímico «Évora Monte». As coisas são como são e, para os meus antepassados que decoraram mais de duas frases de José Acúrcio das Neves, era o mínimo que podiam fazer: minimizar os estragos, aprender a virtude da derrota e manterem-se afastados da ribalta. Na verdade, creio que Eça de Queirós trataria amavelmente os Homem dessas eras – como personagens vagamente cómicos, inimputáveis acerca da política do seu tempo, respeitadores da gramática, tratando do jardim e guardando bibliografias. Digamos que a nós, os minhotos do Portugal velho, nos coube a melhor parte de Eça – sermos ignorados. Os seus retratos do Chiado, dos Ministérios, das secretarias, das corridas de cavalos, dos adultérios sem glória, dos políticos da Regeneração e do Constitucionalismo, do S. Carlos desafinado e da imprensa de costumes, deixam-nos a salvo. E, além de nos deixar a salvo, acabamos por ser uma das imagens luminosas da Pátria – quando Eça, nas suas cartas, menciona as saudades das estradas do Minho. As «estradas do Minho» é uma maneira de dizer, porque atrás das estradas do Minho vem o Portugal que Eça conhecia de ouvido e que seria o cenário dos romances de Mrs. Trollope, se Mrs. Trollope não fosse inglesa, e se o Monte dos Vendavais não se passasse em Inglaterra.


Nessa época, a nossa família já não lia A Nação nem se incomodava com a religião velha ou com o casamento civil. Estava retirada. Depois da Maria da Fonte e antes da Patuleia, estávamos preparados para os romances de Eça. Aliás, para todos os romances de Eça. O meu avô, administrador de quintas no Douro, tratou mesmo de desenvolver uma investigação minuciosa sobre os pastores anglicanos do Porto, a fim de verificar se existiria algum Craft (como o Craft de Os Maias) depois de ter conferido que era impossível encontrar o rasto do pai da Sra. Condessa de Gouvarinho.

Aliás, era impossível encontrar o nosso rasto. Nós, as velharias, ficávamos de fora, rindo muito, maledicentes e maduros, desse país distante que se corrompia e sofria nas páginas de Eça, decompondo-se como personagens de uma farsa ou de uma comédia. Tínhamos sido vencidos há muito tempo; a democracia, a sociedade liberal, não era assunto nosso. Convinham-nos mais as páginas de A Brasileira de Prazins, de Camilo, o último dos desesperados e provavelmente o último dos miguelistas.

 

(Continua...)

 

Texto de Dr. António Sousa Homem, escrito para a apresentação da biografia de Eça de Queirós, de Maria Filomena Mónica.


 

A Tia Benedita não gostava de cavalos – suponho que por pensar que o país se perdeu naquele período de convalescença do senhor D. Miguel a seguir ao acidente de carruagem em que partiu uma perna em Novembro de 1828. A senhora, matriarca dos Homem de várias gerações, atribuía aos cavalos a responsabilidade pelo acontecimento que o reteve no leito e entregou o país aos desmandos, abusos e horrores que se seguiram. Eis como o acaso intervém na história. De resto, a família, como se sabe, conserva o retrato do príncipe proscrito entre as sombras e poeiras do velho casarão de Ponte de Lima. Manter os retratos é uma coisa; outra, inteiramente diferente, é viver como se o país não tivesse atravessado duzentos anos de patifarias e de sucessos. A família, por isso, limita-se a visitar o retrato uma vez por ano, disciplinada e silenciosa. E, evidentemente, continuou a usar cavalos, tendo um tio dos Arcos de Valdevez, inclusivamente, raptado uma noiva à porta de uma igreja – levando-a a trote pelas veredas do Gerês, para depois se casarem no Lugo, na Galiza.
 
Não fosse a Doutora Filomena Mónica, que alimentou a vaidade de um velho sem pudor (prefaciando-lhe um livro), e eu não recordaria esta história que, a falar verdade, é apenas a descrição de uma birra famosa na nossa família, onde a Tia Benedita é a grande figura tutelar, conservando não só os retratos mas também os ressentimentos, os anacronismos, os momentos de fé e os episódios de glória. Quando, empurrada pelo velho Doutor Homem, meu pai, entrava nas discussões mais profundas sobre o antigo regime, a República, os costumes e a devassidão, a senhora encolhia os ombros e limitava-se a murmurar que «os livros do Eça lá pintam o que há para pintar». Ela referia-se ao Primo Basílio e ao Crime do Padre Amaro, que evidentemente nunca leu, mas onde detectaria – se quisesse – os sinais da decadência da Pátria, que ela atribuía aos jacobinos, à maçonaria, ao dr. Afonso Costa e à falta de religião. O velho Doutor Homem, meu pai, concordava acenando com a cabeça, recordando que também ele – educado por viagens a Londres, pela leitura do Telegraph, e pela embirração com o dr. Salazar – era filho de Eça. Como nós somos filhos de Eça. O que quer dizer, de largo, que todos os lemos às escondidas ou às claras.

 

(Continua...)

 

Texto de Dr. António Sousa Homem, escrito para a apresentação da biografia de Eça de Queirós, de Maria Filomena Mónica.
 

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